Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O furalismo ganhou do jornalismo

Daqui a dez anos, quando a palavra ‘mensalão’ estiver dicionarizada como sinônimo de ‘mensalidade paga a parlamentares para que votem projetos de interesse do governo’, a assessora Geralda Magela Rodrigues, do gabinete do deputado Sigmaringa Seixas, que teve a infelicidade de trocar um cheque de 400 reais no Banco Rural na mesma data em que se fizeram grandes saques na conta das empresas do publicitário Marcos Valério, será identificada como pessoa ‘envolvida no famoso escândalo do mensalão, conforme reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, de 14/7/05′. Se estiver viva daqui a 30, 40 ou 50 anos, continuará a ser citada como uma pessoa envolvida com ‘aquela história do mensalão’. No dia seguinte à sua morte, seu necrológio registrará o envolvimento com o mensalão. ‘Lembro muito dela, uma boa pessoa. Mas andou metida com o mensalão, não foi?’. Anos depois de sua morte, e o esquema do mensalão ainda fará parte de sua biografia. Muito provavelmente seus filhos e netos serão identificados na rua como ‘os filhos e netos de uma certa Geralda, funcionária da Câmara, que esteve envolvida no caso do mensalão’.

E não há exagero algum nisso aí. Está acontecendo e vai acontecer pelos simples fato de que não existe reparo a uma insinuação de corrupção como a que foi divulgada pelo Jornal Nacional. Ou pelos jornalões que repetiram como papagaios a infâmia levada a público cost to coast pelo mais influente telejornal latino-americano. Na divulgação escandalosa da lista dos nove assessores de petistas que teriam ido ao Banco Rural na mesma data dos saques nas contas de Valério, e que por isso foram condenados à danação eterna, rasgaram-se as páginas dos manuais de jornalismo onde se trata dos cuidados que se deve ter com uma tal de honra alheia. Os responsáveis, como sempre, alegarão que ‘ouviram a outra parte’, tanto que um sisudo William Bonner contou que a assessoria do deputado Sigmaringa Seixas apresentou cópia do cheque descontado pela funcionária Geralda. Cumprida a obrigação de ‘ouvir a outra parte’, Bonner e sua equipe foram dormir tranqüilos, cevados na glória fortuita do furo que arrombou para sempre a reputação de algumas pessoas. Mas, que diabo, são apenas ‘umas certas pessoas’. E dentro da lógica tupiniquim de que todos são culpados até que provem o contrário, dirão que eles tiveram espaço pra se defender. Se não o fizeram, como aconteceu com o deputado Wasny de Roure, que estava no exterior, que se danem, ora.

Para ajudar a detonar ainda mais a matéria do Jornal Nacional, poderia lembrar dos homônimos dos assessores dos deputados Devanir Ribeiro e Vicentinho. Pior: da visita do homônimo do assessor do deputado Wasny de Roure, que esteve no tal banco quando Wasny ainda nem era deputado… Mas vamos ficar apenas no caso da funcionária Geralda, pra manter um foco mais definido. Em condições normais, a matéria não se sustentaria pelo risco de se indiciar erroneamente alguém que poderia ter ido ao banco tratar de assunto pessoal ou de interesse do gabinete do deputado. ‘Geralda, esqueci de pagar o telefone lá de casa. Na hora do almoço, dá pra quebrar o galho e ir lá no banco, resolver isso pra mim?’

Gato miúdo, dirão

Mas vamos admitir que Geralda, sim, poderia ter ido mesmo receber o mensalão. ‘Geralda, hoje à tarde você está liberada, porque hoje é um dia importante: dia de ir buscar o mensalão’. Mas, como provar que naquele dia Geralda teria ido mesmo buscar o mensalão e não esteve no banco apenas para tratar de assuntos particulares? Na dúvida, o Correio Braziliense, que levantou originalmente a lista (e não a TV Globo, que abriu a matéria com o selo do ‘exclusivo’), preferiu não publicá-la. Até porque, além dos homônimos, centenas de deputados ouvidos apresentaram explicações razoáveis. Corria o risco de expor pessoas inocentes, explicou o Correio. Mas a lista, oh, tentação, ficou arquivada nos computadores do PFL, onde havia sido feito o cruzamento de assessores com os registros das idas ao banco. O deputado Rodrigo Maia, procurado pela Globo, abriu a lista. Mas ‘esqueceu’ de incluir dois assessores de seu gabinete que também tinham ido ao banco. E seu próprio motorista, que esteve lá 14 vezes. Só isso já serviria para demonstrar a inconsistência da história toda. Mas, em vez de se arrepender antes, como faria o conselheiro Acácio, Maia arrependeu-se depois.

Voltemos à Geralda. Se ela estava na lista, foi procurada pela Globo e apresentou documento provando que esteve na agência tratando de assunto particular, o mínimo seria usar uma velha máxima do jornalismo investigativo: se a suspeita não se confirmou, a lista é furada, merece a cesta do lixo e tamos conversados. Mas a Globo preferiu sustentar o ‘furo’ atribuído a uma sua comentarista, a abdicar da matéria que mal se sustentaria até o dia seguinte. O deputado Rodrigo Maia, arrependido, assumiu a responsabilidade pela divulgação da lista. Candidamente, transferiu à Globo a responsabilidade, afirmando que a emissora ‘nunca poderia ter ‘dado’ o Sigmaringa e o Paulo Delgado’, seus amigos. É verdade. Mas a irresponsabilidade original transmitiu-se, em cascata, a uma emissora de televisão, cujo surto de sensacionalismo irresponsável seria reproduzido pelos principais jornais do país.

O furalismo ganhou do jornalismo. O denuncismo ganhou da apuração responsável. E a Geralda? Ah, a Geralda é só uma assessora parlamentar, inofensiva, gato miúdo, dirão. A menos que faça uso de uma linguagem que essa turma toda entende muito bem: grana. Se a Geralda sapecar uma ação contra a Globo e todos os jornais por ofensa a sua honra e os obrigar a fazer uma bela reparação financeira – já que não vai rolar mesmo um pedido de desculpas, do mesmo tamanho e nos mesmos (tele)jornais –, a moça tem chance de faturar um troco bem maneiro. Se não lavar a honra, pelo menos lava a égua.

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Jornalista, professor e pesquisador em Comunicação. Esta coluna faz parte de seu projeto acadêmico na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília