“Nos meses de julho e agosto, a Agência Brasil publicou 34 matérias sobre as denúncias e as investigações relacionadas à atuação de um suposto cartel composto de subsidiárias de grandes empresas multinacionais em várias licitações de construção, manutenção e compra de equipamentos para os sistemas de metrôs e trens urbanos de São Paulo e Brasília no período de aproximadamente 1995 a 2009. As investigações partiram de informações prestadas ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), uma autarquia vinculada ao Ministério da Justiça, por uma das participantes do esquema, identificada posteriormente – a Siemens Brasil. Em troca da cooperação, a Siemens, caso apresentasse provas suficientes para a condenação das envolvidas, beneficiar-se-á do programa de leniência – uma espécie de delação premiada – do Cade, que oferece imunidade administrativa e criminal ou a redução das penalidades, caso sejam aplicadas.
O fato das investigações prosseguirem sob sigilo de Justiça dificulta, obviamente, a cobertura. Os detalhes sobre os casos que estão sendo investigados não estão publicamente disponíveis e os veículos de comunicação só os obtêm por meio de vazamentos. Essas limitações, porém, não diminuem a importância de contextualizar as notícias em termos do quadro de referência principal, que é a atuação dos cartéis na economia. Em vez disso, o que se vê na cobertura feita pela Agência Brasil é uma atenção às disputas em torno do acesso e da utilização das informações – que pediria outra contextualização, voltada para a organização das iniciativas investigativas do Estado e os direitos dos acusados, questões levantadas, por exemplo, nos debates sobre a PEC 37 – e uma confusão entre os atos típicos das empresas cartelizadas e os atos de improbidade administrativa que, embora com a conivência das mesmas empresas, não fazem parte das práticas de cartel investigadas pelo Cade.
O cartel é um fenômeno da esfera econômica, caracteristicamente dos mercados oligopolizados, onde o número de vendedores é pequeno. De acordo com um panfleto disponível no portal do Ministério da Justiça, ‘cartéis são acordos, explícitos ou tácitos, entre concorrentes de um mesmo mercado, em relação a preços, quotas de produção e distribuição, divisão territorial do mercado, visando a aumentar preços e lucros conjuntamente para níveis próximos dos de monopólio. A principal característica do cartel é a combinação, o acordo, o conluio entre os concorrentes’ [1]. A legislação brasileira proíbe a existência dos cartéis, independentemente da sua atuação incluir ou não o exercício de influência – pelo pagamento de subornos, por exemplo – sobre os agentes públicos quando se trata das vendas ao Estado por meio de processos de licitação.
Como se explicita na própria cobertura, são apenas cinco casos que o Cade está investigando da atuação do suposto cartel nas licitações dos sistemas de metrô e trens urbanos em São Paulo e um caso nas licitações do metrô do Distrito Federal. No entanto, a possibilidade de haver fatos novos nas evidências fornecidas pela Siemens Brasil motivou o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) a reavaliar seus próprios inquéritos, muitos dos quais estavam arquivados, envolvendo os mesmos agentes. Quarenta e cinco inquéritos foram retomados e novos inquéritos – oito pelo menos – foram abertos. As matérias publicadas pela ABr constatam essa diferença de fóruns, mas a distinção entre atos de cartel e atos de improbidade administrativa nem sempre fica clara.
Um exemplo disso aparece logo no título de uma das matérias: ‘Investigações do MP sobre cartel no Metrô em São Paulo apuram aumento de valores de contrato’ [2]. No entanto, o caso enfocado na matéria é uma ação contra ex-diretores da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e três multinacionais – a francesa Alstom, a canadense Bombardier e a espanhola Caf – acusados de ‘irregularidades que, segundo o MP, foram praticadas no contrato para fornecimento de trens no valor total de R$ 223,5 milhões. De acordo com o Ministério Público, houve irregularidade quando foi acordado o fornecimento de 12 trens, além dos 30 estabelecidos no contrato original, dispensando uma nova licitação. ‘Os agentes públicos da CPTM, em nome da ‘continuidade’ e em total arrepio à Lei de Licitações, deliberaram pela feita de nova compra de trens, formulando singelamente o ‘sexto aditamento’, o que configurou uma nova compra de trens, inclusive com outra tecnologia, descaracterizando a característica de aditamento’, argumentou o MP’.
Se irregularidades foram cometidas nesse caso, elas teriam sido ‘atos que configurem improbidade administrativa, dano ao patrimônio público e enriquecimento ilícito’, como a própria matéria afirma mais adiante, mas elas não envolvem a atuação das empresas como cartel. Aliás, em outra matéria consta que o MP-SP ‘alega que, à época, a empresa japonesa Mitsui comunicou à Secretária de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo que poderia entregar os trens por um valor inferior ao cobrado pelo consórcio formado pelas três companhias’ [3].
Quanto às fontes consultadas, embora haja uma representação ampla em termos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judicial e dos governos federal, estadual e municipal e da sociedade civil, nota-se uma concentração em certas áreas, particularmente do governo do estado de São Paulo (governador, Casa Civil, procurador-geral do Estado, Secretaria de Transportes Metropolitanos e Metrô), com 13 (20%) das 64 fontes citadas; do MP-SP, com oito (13%); e dos manifestantes paulistanos, com nove (14%). Em conjunto, essas três áreas respondem por 47% das fontes citadas. Em contraste, apenas um especialista (um professor de direito da UnB) foi citado e nenhum economista nem especialista de São Paulo foi consultado.
Mercados oligopolizados têm sido objeto de estudo de economistas há mais de um século. Uma atenção aos achados desses estudos teria levantado vários pontos interessantes cuja inclusão na pauta teria proporcionado uma dimensão de contextualização que, se não foi omitida completamente na cobertura, foi pouco explorada. Em primeiro lugar, as estratégias adotadas pelas empresas que atuam independentemente nesses mercados levam a resultados que se aproximam àqueles determinados por empresas que atuam em cartéis. Segundo o economista Rutelly Marques da Silva, da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, ‘embora proibidos pela legislação, nada impede que as firmas o formem de maneira implícita, sem que seja necessário um acordo formal para definir suas regras de funcionamento. Nesse caso, têm-se os cartéis implícitos ou tácitos […]. Neste sentido, estudos que busquem tratar de questões relacionadas aos cartéis tácitos são importantes, principalmente porque James Friedman mostrou que a constituição de cartéis dessa natureza é algo inerente ao mercado oligopolizado’ [4].
Finalmente, os oligopólios não são exclusivamente do lado dos vendedores. Quando o número de compradores é pequeno, existe o que se chama oligopsônio, conhecido no setor de abatimento pecuário e aviário, onde os frigoríficos impõem seus preços nos criadores. Mas pode haver oligopsônios também nas compras governamentais. O contribuinte está acostumado a assistir a notícias sobre delegações oficiais que viajam para conhecer as obras públicas em outras cidades, inclusive no exterior. Lá os integrantes dessas delegações trocam informações com seus congêneres e o cidadão espera que as informações obtidas sejam trazidas de volta para casa para serem utilizadas em seu benefício.
De acordo com as conclusões de um dos poucos estudos de mercados compartilhados por oligopólios e oligopsônios, ‘se ambos, compradores estratégicos e vendedores estratégicos, estiverem presentes no mercado, a influência de cada sobre o preço é contrabalançada pelo comportamento do outro’ [5]. Na única matéria publicada pela ABr sobre as denúncias de cartel nas obras do metrô do DF, há um comentário interessante da presidenta do Metrô-DF, Ivelise Longhi. ‘Segundo o governo do Distrito Federal (GDF), o contrato com as empresas que prestam serviço atualmente será encerrado neste ano e um novo edital deve ser lançado ‘em breve’. ‘Estamos fazendo alterações para tornar o edital mais seguro, para impossibilitar esse tipo de prática. Vamos mudar a redação para que não gere dúvidas’, diz Ivelise’ [6]. Se a cobertura tivesse entrado nesta questão das alterações que podem ser feitas em editais para fortalecer a capacidade do oligopsônio governamental no combate à atuação dos cartéis na contratação de obras públicas, teria prestado um serviço valioso de informação para a cidadania.
Boa leitura!
[1] Áurea Regina de Queiroz Ramim, ‘O cartel. Por que combater?’.
http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7BDA2BE05D-37BA-4EF3-8B55-1EBF0EB9E143%7D
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-08/investigacoes-do-mp-sobre-cartel-no-metro-em-sao-paulo-apuram-aumento-de-valores-de-contrato
[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-09/justica-de-sao-paulo-da-prazo-para-defesa-final-em-processo-sobre-compra-de-trens
[4] ‘Ciclos Econômicos, Incerteza Inflacionária e Estabilidade dos Acordos de Colusão Táticos no Brasil’, dissertação apresentada ao curso de mestrado em economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003. http://web.cedeplar.ufmg.br/cedeplar/site/economia/dissertacoes/2003/Rutelly_Marques_da_Silva.pdf
[5] Conor Devitt e Richard Tol, ‘Oligopoly and Oligopsony Power in the Swedish Market’, University of Sussex, Economics Department Working Paper Series No. 32-2012 http://www.sussex.ac.uk/economics/documents/wps32-2012-tol.pdf
[6] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-08/cade-investiga-licitacoes-do-metro-do-df”