Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A sociedade do espetáculo difuso e o devir negro-gay de Putin

 

1.

Bakhtin não se cansava de nos lembrar que o signo é ideológico. A ideologia, por sua vez, bem mais que uma falsa consciência, deve ser entendida afirmativamente: é a hierárquica história humana acumulada como monumento à barbárie, para dialogar também com Walter Benjamin.

2.

Uma ideologia é, pois, o próprio monumento, bárbaro porque foi construído à custa de indescritíveis genocídios, humilhações, escravidão, desprezo, indiferença, preconceitos, guerras, arrogância, presunção, mentiras. O monumento é o fetiche que abstrai, em seu engenho e arte, as relações de opressão entre humanos. Nenhuma civilização baseada na opressão (de classe, de gênero, étnica, simbólica, etária) existiria sem o que é possível chamar de forças de trabalho assassinadas no monumento.

3.

O monumento é constituído de roubadas e assassinadas forças de trabalho despendidas para produzi-lo em nome das classes dominantes, razão suficiente para afirmar que, bem mais que palácios, pirâmides, estátuas, cidades, os opressores de ontem e de hoje são monumentais – barbáries encarnadas.

4.

Se, com Marx, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, é porque esta rouba para si as forças de trabalho humanas e tecnológicas erigindo-as como monumento de sua dominação de classe. Se, por outro lado, o monumento é barbárie, ele também é a ideologia da classe dominante; sua barbárie monumental. Esta só existe à custa da humilhação, do sofrimento e da morte da força de trabalho coletiva.

5.

Sob esse ponto de vista, pouco importa se o opressor também está no oprimido, que também aqui e ali se manifesta como opressor ativo, pois, se numa determinada relação é, por exemplo, o oprimido econômico, noutra pode se tornar um ativo machista, um opressor no âmbito das relações de gênero. Pouco importa se o ativo e o passivo são intercambiáveis. A barbárie-mor, a classe dominante, é a civilização inteira que rouba, humilha, sequestra e mata o trabalho coletivo, o qual se torna trabalho morto, porque é trabalho voltado contra a dimensão coletiva; trabalho monumental, a barbárie de todas as épocas marcadas por civilizações opressoras.

6.

Não existe saída para esse imbróglio senão indo além de sua própria civilização, coisa que não se consegue sem entender claramente que a barbárie da opressão no contemporâneo rouba, sequestra, liquida, humilha e genocida as forças de vida do planeta inteiro, solapando-as e capturando-as em graus de complexidades e eficiências cada vez mais surpreendentes, de tal maneira que, no contemporâneo, é a força revolucionária mesma – a que os povos oprimidos levam a cabo para destituir o monumento à barbárie de sua própria época – que se transformou em um atroz monumento à barbárie, em tempo real, dedicado espetacularmente a semear  a barbárie nos e entre os povos do mundo. Líbia, Egito, Síria são atualmente os exemplos mais monumentais.

7.

A ideia de revolução, portanto, como monumento à barbárie de nossa época, ao invés de ser usada para ir além do sistema de opressão da civilização burguesa, está sendo manietada para mantê-lo.

8.

Estamos na obrigação de estar à altura de nossa época. Para tanto, é preciso ultrapassar a civilização burguesa sem ignorar as forças futuristas de suas tecnologias de dominar. Parece que resistimos a perceber o nó górdio dessas forças, responsável pela própria civilização burguesa e se constituindo como a sua forma específica de produzir sem cessar o monumento genocida de sua barbárie, instalado no plano catastrófico da destruição da vida no planeta, na atualidade.

9.

Entender o monumento à barbárie da civilização burguesa de alguma forma está relacionado com o desafio de oferecer respostas consequentes às seguintes questões: como a civilização burguesa produz a vanguarda ou o futuro de sua dominação. Se o jogo da aranha e sua presa é esse no qual esta, ficando quieta, se submetendo, traçará inevitavelmente seu destino, a morte, a senha para a sua libertação da teia deve ocorrer através de sua agitação desesperada, inconsciente? Mas não é precisamente se agitando na teia que a presa sela de vez seu destino fatal? O que a aranha deseja não é mesmo que a presa se agite para fugir? Não é assim que ela, a aranha, soltando-se sobre a presa agitada, ratifica sua condição de predadora? Como se constitui a teia da civilização burguesa? Como não ser apanhado por ela, tornando sua presa dócil ou “revolucionária”?

10.

Penso que um bom começo de conversa para essas questões podem ser agitadas, para ficar no mesmo campo semântico, a partir da teia argumentativa encontrável no livro O inconsciente estético (2009), do filósofo francês, Jacques Rancière. Para o autor de Políticas da escrita (1995), Freud não teria dialogado com Sófocles, para fundamentar o conceito de inconsciente, por mera questão retórica ou eterno retorno ocidental à arte grega, mas antes de tudo porque existe um link que ligaria Édipo Rei (tragédia que Sófocles escreveu por volta de 427 a.C.), a modernidade capitalista e o inconsciente freudiano.

11.

Para Rancière, a modernidade se constitui a partir de um inconsciente estético – seu sujeito e não seu predicado – porque nela o que está em jogo é o mundo do sensível, o encontro, a mistura, o resvalar dos corpos vivos produzindo forças de trabalho. A modernidade é ela mesma uma moldagem estética no campo do sensível, uma montagem de corpos, logo de povos, agitando-se, amando-se, odiando-se, o que significa dizer que é antes de tudo uma peça de teatro, uma tragédia, mundialmente representada e apresentada com o objetivo de colocar em cena povos se movimentando, como presas, na teia de aranha do mundo sensível, a própria modernidade, planetária teia de povos capturados a erguer por todos os lados o monumento estético de um destino que deve ser trágico porque a agitação dos povos serve antes de tudo para atiçar o desejo sem fim de mais-valia trágica dos deuses do Olimpo: seus oligarcas, encarnados monumentos vivos que apresentam e representam a barbárie de toda uma civilização.

12.

O inconsciente estético da modernidade, portanto, é a agitação planetária dos povos, renovada e implementada a cada novo desafio, razão pela qual, no contemporâneo, a ideia de revolução passou a ser largamente usada como tática e estratégia para capturar povos e fazê-los movimentar-se tragicamente quanto mais acreditam que podem produzir suas respectivas liberações e revolucionárias justiças.

13.

Se a ideia de revolução é parte da teia da modernidade burguesa no contemporâneo é porque ela está tecida e entretecida para capturar e produzir especialmente dois perfis ávidos por agitá-la, a saber: o fundamentalismo religioso e identitário e o romantismo revolucionário das esquerdas.

14.

O primeiro perfil é encontrável aos milhões, para não dizer aos bilhões, e se desdobra em dois. De um lado hordas de humanos abandonadas à própria sorte especialmente após e durante a avalanche das receitas neoliberais que foram impostas aos países da periferia do planeta por entidades como FMI e Banco Mundial e que agora estão sendo enfiadas goelas abaixo nos povos da Europa e Estados Unidos. Essa multidão de humanos precisa basicamente de um valor e de uma oferta mais ou menos irrecusável para se agitar de forma suicidaria. O valor é a crença religiosa; a oferta é uma garantia mínima de sobrevivência, sua e de seus familiares: empregos. No Oriente Médio, o valor é a crença religiosa, milenarmente produzida. O novo posto de trabalho, a oferta, por sua vez, é a do emprego de combatentes (por Alá), treinados, financiados e armados principalmente pelas oligarquias americanas, europeias, israelenses e dos aliados daquela região, Turquia, Jordânia, Arábia Saudita, Qatar.

15.

Os dedicados religiosamente ao trabalho do combate precisam ainda de uma motivação a mais, a do inimigo a ser combatido, a saber: o grupo étnico supostamente  não tão protegido por Alá como, por exemplo, supõe ser Al Qaeda, bravos extremistas religiosos ávidos por explodir o Oriente Médio em nome de Alá usado e abusado para combater contra os xiitas e os laicos, em nome especialmente das oligarquias sunitas de Qatar e Arábia Saudita e também das castas sionistas de Israel – todos funcionando como a quinta coluna do extremismo saqueador do imperialismo ocidental. Aqui, tempos, pois, o segundo lado do primeiro perfil de agitadores da teia de aranha atual, o fundamentalismo identitário, o qual, misturado ao fundamentalismo religioso forma a carniceira bomba de bucho de canhão mais poderosa do planeta.

16.

Por sua vez, o segundo perfil é este: os românticos revolucionários da velha esquerda – e velha porque cega para perceber que a ideia de revolução foi absolutamente colonizada e funciona como isca poderosa para capturá-los. Embora estejam marcados pelo idealismo romântico do século 19, esse perfil de agitadores da modernidade capitalista, em sua linha de frente ocidental e ocidentalizante, é basicamente composto por jovens de classe média que acreditam na força espontânea do combate revolucionário, na intuição e de uma forma ou de outra inspiram-se em filosofias vitalistas, como as de Deleuze e Guattari e, por derivação, as de Antonio Negri, com o seu conceito de multidão: o suposto neo-romântico ator da vanguarda político-revolucionária do contemporâneo.

17.

Não estou, com isso, recusando a filosofia de Deleuze e Guattari. Os conceitos, ideias, pensamentos não são absolutos e não valem igualmente em todas as épocas, não sendo circunstancial que, respondendo, em uma entrevista, à questão relativa ao ser da esquerda, já no final da vida, Deleuze afirmou: “Ser de esquerda é uma questão de perspectiva”, num contexto em que a perspectiva contemporânea é esta em que os revolucionários são solicitados para agitarem tragicamente a teia de aranha da civilização burguesa.

18.

A filosofia pós-estruturalista, em sua versão francesa, foi largamente capturada pelas universidades americanas, razão por que (também, ou antes de tudo) alcançaram prestígio internacional. É claro que essa filtragem não fica de graça e é preciso afirmar com todas as letras: as universidades americanas são usinas de ideias comprometidas até os miolos com o imperialismo ocidental, não sendo circunstancial que formem doutores e pós-doutores, principalmente na área das humanas, cada vez mais críticos do próprio conceito de imperialismo, assim como cada vez mais aptos a confeccionarem requintados e sutis argumentos esgrimidos como armas teóricas comprometidas com a desqualificação de qualquer perspectiva teórica pós-capitalista, razão por que tratam com desdém, às vezes com piedade, o devir esquerda, que só pode sê-lo se sua perspectiva não estiver comprometida com as linhas de frente do imperialismo ocidental.

19.

O devir esquerda do contemporâneo necessita mais do que nunca de clareza de perspectivas para não ser usado como bucha de canhão da agitação da modernidade burguesa em sua versão mais trágica: a do imperialismo americano-ocidental, que usa e abusa da ideia de revolução para empurrar a humanidade à barbárie do monumental racismo elitista do Ocidente. Devir esquerda, portanto, só tem uma saída em termos de perspectiva, colaborar com o processo de construção de uma sociedade pós-capitalista afirmando a importância irrecusável de um mundo multipolar, razão suficiente para evidenciar que o lugar da multiplicidade no contemporâneo o é antes de tudo o da multipolaridade de blocos de países no interior da própria modernidade burguesa.

20.

Sob esse ponto de vista, o imperialismo ocidental-americano, marcado por um belicismo comprometido com o domínio unilateral estadunidense-sionista é sim o maior perigo para a vida no planeta, principalmente porque se tornou especialista em inventar falsas multiplicidades, através do domínio da sociedade do espetáculo incluindo nesta não apenas a televisão, o rádio a imprensa escrita, o cinema, mas também a internet e as redes sociais, verdadeiros monumentos à barbárie de uma humanidade dividida explosivamente em subjetividades étnicas, de gênero, de classe, etárias, religiosas; subjetividades absolutamente vulneráveis e capturáveis pela teia de aranha fundamentalmente estadunidense que é a web, rede de redes nas quais e das quais somos presas fáceis quanto mais nos agitamos nela julgando estarmos livres para revolucionar (essa é a palavra de ordem), isto é, agitar, inviabilizando, a multipolaridade como vetor de devir esquerda no interior da civilização burguesa atual.

21.

Guy Debord, ao desenvolver o conceito de sociedade do espetáculo, a dividiu em duas variáveis intercambiáveis, constituídas, respectivamente, pelo espetáculo concentrado e o espetáculo difuso. Ao primeiro, ele se referia às sociedades, como as da periferia do sistema-mundo, tomadas por lideranças políticas autoritárias, que concentram em si tanto a esperança como o desespero de todo um povo liderado. Ao segundo, por sua vez, Debord se referia à americanização espetacular do mundo, difusa porque constituída por múltiplos rostos espetacularizados, incluindo rostos políticos, mas também de famosos do cinema, do esporte, da moda, do sexo, da arte, de gêneros, etnias.

22.

À junção dos dois espetáculos Debord deu o nome de espetáculo integrado, abraço monumental e bárbaro da espetacular civilização burguesa sobre o planeta.

23.

O que está acontecendo com o lado difuso da sociedade do espetáculo, seu lado americano, é que ele está cada vez mais concentrado, de forma ditatorial, fazendo uso de rostos isolados, sobretudo aqueles que se encontram no campo étnico e de gênero, para despoticamente atacar a multipolaridade em processo de construção no interior da civilização burguesa atual, usando para tal o romantismo revolucionário de esquerda e as identidades fundamentalistas, ambos formados a partir do espetáculo concentrado, logo facilmente agitáveis pelo poder difuso do espetáculo americano.

24.

Se, por sua vez, o que marca a modernidade capitalista é a sua força intrínseca para apanhar e orquestrar o mundo sensível, sob o nome comum das forças de trabalho dos povos, o lado difuso dessas forças, o espetacular americano, está cada vez mais concentrado, ditatorial, porque percebeu que seu verdadeiro obstáculo está neste outro campo em formação do mundo sensível pós-moderno, o da multipolaridade, que tem funcionado precisamente como contraposição ao espetáculo difuso americano, cada vez mais concentrado, razão por que necessita como nunca de um vetor específico da sociedade do espetáculo, o publicitário, requisitado para esconder a perversão bárbara concentrada do outrora poder difuso americano.

25.

Um lado publicitário do outrora difuso espetáculo ocidental nos é apresentado como direitos humanos, pretexto para o pior espetáculo concentrado que a modernidade jamais imaginaria, o americano, que sorri, recebe prêmio Nobel da Paz, joga com as alteridades, com o romantismo de esquerda, com o fundamentalismo religioso, a fim de colocar-nos todos a serviço do espetacular difusamente concentrado poder estadunidente; esse monumento à barbárie disposto inclusive a começar uma terceira guerra mundial como parte de um não menos espetacular plano monumental de poder despótico.

26.

Se o conceito devir, conforme a filosofia de Deleuze e Guattari, é sempre devir outro, de alteridade, significa dizer que não existe devir branco, homem, heterossexual, mas devir negro, gay, mulher, criança, animal, pobre, índio, esquerda, molecular, periferia. Outro importante aspecto do devir está relacionado precisamente com seu movimento, sua perspectiva, razão pela qual não é nunca imitação. Sob esse ponto de vista, embora um branco não realize devir branco, ele pode devir negro, índio, latino, assim como um heterossexual pode devir gay. Devir não é identidade fixa; Guattari não se cansava de destacar isso, mas singularidades que destituem as semióticas dominantes.

27.

Não existe semiótica mais dominante no contemporâneo do que o monumento do espetáculo concentrado, travestido de difuso, do poder das elites americanas, marcado por um belicismo que utiliza sua força difusa espetacular e a coloca a serviço da produção de um mundo despótico, unipolar, ditatorial. Destituir essa vontade despótica de unipolaridade, que realiza guerra no mundo todo, substituindo-a por uma multipolaridade, mesmo que no interior da sociedade burguesa, é, sim, uma questão de devir esquerda e, como um devir é sempre solidário com outros, é também uma questão de devir negro, índio, mestiço, amarelo, mulher, criança, homoafetivo, animal, molecular, periférico.

28.

Se as invasões americanas, suas infinitas guerras, beneficiam fundamentalmente multimilionários brancos, sexistas, machistas, racistas, perfil de sua corporativa elite, é evidente que uma declaração de guerra à Síria, feita por um presidente negro, como Obama, nada tem de devir negro, pelo contrário. Se, por outro lado, devir é sempre devir outro e destitui, de maneiras diversas, as semióticas dominantes, não resta a menor dúvida de que, no último encontro do G-20, realizado na Rússia, Putin, mesmo sendo branco, mesmo tendo sido acusado de homofobia recentemente, produziu, em perspectiva, devir negro, ao dizer não à barbárie de uma nova guerra, a qual mata, e tem matado, implacavelmente mulheres, crianças, idosos, gays, alteridades.

29.

Considerando que um devir leva a outro, que um devir negro o é também índio, que o é devir mulher, que é devir criança, que é devir animal, que é devir molecular, duas derradeiras perguntas emergem: ao dizer não à barbárie de uma nova guerra estadunidense, país que mais efetivamente tem usado suas armas de destruição massiva, inclusive armas químicas, contra os devires do mundo, Putin não terá produzido um extraordinário devir gay, negro, mulher, criança, molecular?

30.

Síria, ao resistir à invasão de fundamentalistas racistas, homofóbicos, anti-laicos, treinados, financiados e a serviço, como combatentes do terror, ao monumento ocidental-americano, não está como Estado soberano, produzindo devir negro, mulher, homofófico, criança, molecular, futuro?

31.

Obama, por outro lado, cada vez mais não está se evidenciando como o racista, o homofóbico, o machista, o ditador sanguinário a serviço das brancas e heterossexuais oligarquias do Ocidente?

32.

Alteridades do mundo, uni-vos contra o difuso poder concentrado da ditadura planetária americana, através, por exemplo, da luta incessante por um mundo midiático multipolar, tomado cada vez mais, em perspectiva, por devires de justiça, liberdade, cooperação, de todos os povos, entre todas as multiplicidades.

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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor na Universidade Federal do Espírito Santo