Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Justiça reconhece importância de reportagem

Em janeiro de 2003, um inquérito do Ministério Público Federal, iniciado em Porto Alegre, aguardava na sede da Procuradoria Geral da República, em Brasília, a homologação superior para arquivamento. Esse rumo foi alterado graças a uma exaustiva, criteriosa, rigorosa e persistente reportagem. Naquele mês, a edição 138 da revista Galileu, da Editora Globo, trouxe na capa uma chamada para a matéria ‘A intoxicação abafada’, do jornalista José Alberto Gonçalves Pereira. O lide, como deve ser, dizia o essencial:

‘O medo de perder o emprego levou mais de cem funcionários de um hospital de Porto Alegre a manter silêncio sobre os graves sintomas e os transtornos causados às suas vidas, a partir de uma intoxicação no trabalho em junho de 1999. O inseticida clorpirifós, usado em oito postos de saúde comunitária do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), é conhecido na literatura científica como um agente persistente no ambiente e foi proibido em 2000 para quase todas as aplicações urbanas nos Estados Unidos, inclusive em hospitais. Mas ainda é usado sem essas restrições no Brasil.’ [Veja aqui a íntegra do texto

Na suíte do caso, publicada na edição seguinte da revista, o jornalista mostrou que essa reportagem surpreendeu os procuradores do Ministério Público Federal, que pediram o retorno do procedimento administrativo a Porto Alegre para iniciar a investigação. A partir dessa matéria, o procurador de Justiça federal Carlos Eduardo Copetti Leite, que havia assumido o caso em 2002, decidiu exigir novas explicações ao hospital e também procurar os setores de vigilância sanitária do governo gaúcho e a Anvisa para prestarem esclarecimentos sobre responsabilidades dos órgãos no caso, além de ouvir as vítimas que trabalhavam no GHC ou que haviam sido demitidas. [Leia a reportagem aqui]

Na quarta-feira (13/7), o juiz Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, da Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual de Porto Alegre, determinou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o cancelamento dos registros vigentes e a não concessão de novos registros de inseticidas e desinfetantes domésticos que contenham o organofosforado clorpirifós, produzido principalmente no país pela Dow Agrosciences, que a mesma empresa deixara de comercializar desde 2000 nos Estados Unidos para uso urbano. Além disso, a sentença, que foi noticiada pelo site Espaço Vital, não só mantém liminar para a proibição do uso doméstico desse produto no Brasil – suspenso temporariamente pela Anvisa desde agosto de 2004, presente no Baygon Mata-Baratas, Anti-Mosca Pirinset, Tedox Anti-Cupim e em outras marcas –, exceto em embalagens porta-iscas, com dispositivo de segurança protegendo crianças e animais da exposição ao produto. Na sentença judicial [veja abaixo link para a íntegra da sentença], as palavras do magistrado foram explícitas com relação ao papel da reportagem:

‘O produto proibido no exterior continuava permitido no Brasil, enquanto as autoridades sanitárias lentamente realizavam reuniões e debatiam se havia ou não risco para que o mesmo produto, o mesmo princípio, o mesmo veneno que lá fora era banido aqui dentro também deveria sê-lo. E assim continuava a letargia dos órgãos públicos, mesmo depois de demonstração inequívoca e concreta dos riscos a que o produto expunha a população brasileira em contaminação havida no Grupo Hospitalar Conceição. Em reportagem exclusiva na revista Galileu (fls. 257 dos autos), constou que o clorpirifós é considerado um agente de elevado risco à saúde. Nos Estados Unidos, ele foi proibido em várias aplicações urbanas a partir de um acordo da EPA (Agência de Proteção Ambiental) com a Dow Agrosciences, principal fabricante desse produto. (…) O fato está comprovado nos autos, tendo sido posteriormente divulgado em reportagem exclusiva de José Alberto Gonçalves publicada na revista Galileu, que consta como prova às fls. 257 dos autos dessa ação civil pública.’

Confusão mental

A cobertura desse caso exigiu um grande esforço investigativo do repórter. E também uma grande determinação. Formado em jornalismo em 1990 pela USP, ex-repórter da Folha de S.Paulo e da Gazeta Mercantil e ex-redator do site Agropauta, na época dessa reportagem José Alberto Gonçalves Pereira tinha que se garantir como freelance ao mesmo tempo em que concluía na mesma universidade seu mestrado em Ciências da Comunicação e mais uma graduação, dessa vez em História.

Na condição de editor-chefe de Galileu, testemunhei a determinação desse repórter, que precisou enfrentar não só a costumeira dissimulação dos envolvidos ao dar informações ou a reconhecer sua responsabilidade, mas também a resistência das próprias vítimas, tomadas pela falta de esperança no Poder Público e pelo ceticismo e com relação à imprensa.

Contactados pelo jornalista, os intoxicados ou seus familiares afirmaram que diversas vezes haviam sido procuradas por outros veículos de comunicação, mas que suas entrevistas nem sempre resultavam em publicação de matérias ou, quando eram publicadas, não iam ao fundo da questão. O hospital e as autoridades públicas, em vez de tornarem público o fato, preferiram a comodidade do silêncio, poupando a empresa desinsetizadora contratada e também o priincipal fabricante do clorpirifós no Brasil, a Dow Agrosciences, de ser questionada se deveria seguir o exemplo da matriz norte-americana, proibindo o produto para quase todas as aplicações em ambiente urbano.

A reportagem e sua suíte também foram importantes para outra decisão judicial, tomada poucos dias antes da sentença do juiz Cândido Alfredo Silva Leal Júnior. Trata-se da condenação do Grupo Hospitalar Conceição ao pagamento de indenização de 300 mil reais a Sidônia Malon da Fonseca, 69 anos, separada, mãe de três filhas e, na época da intoxicação, agente de saúde comunitária no GHC. Como mostrou a reportagem, ela levava uma vida normal, embora se medicasse havia 10 anos para combater o vírus da hepatite C. Após a contaminação no trabalho, ela desenvolveu diabetes, herpes nos olhos, tonturas e fortes dores de cabeça, teve uma cirrose e foi obrigada a fazer transplante de fígado. No período após a intoxicação, uma confusão mental também passou a acompanhá-la provocando ‘brancos’ em sua memória e um acidente de carro, quando fraturou uma vértebra. Em agosto de 2004, foi aposentada por acidente de trabalho com base em laudo médico que indicou a intoxicação.

Compromisso de lealdade

Divulgada pelo site Consultor Jurídico em 6/7, essa outra sentença, da juíza Maria Helena Malmann, do Tribunal Regional do Trabalho de Porto Alegre, também não deixou de ressaltar o papel da reportagem de Galileu não só na divulgação do caso, mas também na ampla divulgação de informações técnico-científicas importantes relativas ao caso, como o Relatório Azul, da comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, sobre estudos dos efeitos dos inseticidas organofosforados.

‘O texto foi elaborado em março de 1996, por João Werner Falk (Médico, Professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), por Lenine Alves de Carvalho (cujo currículo já foi citado), por Letícia Rodrigues da Silva (Advogada e Pesquisadora, integrante do Movimento de Direitos Humanos de Venâncio Aires/RS) e por Sebastião Pinheiro (Engenheiro Agrônomo e Florestal, Especialista em Química – Alemanha –, Técnico do Ibama) [disponível aqui]’

De acordo com a matéria do Consultor Jurídico, o hospital havia alegado ‘não haver provas de que o estado de saúde da trabalhadora, portadora de ‘hepatite C’, tenha sido agravado pela inalação dos produtos utilizados na desinsetização. Além disso, sugeriu a hipótese de a própria empregada não ter seguido as orientações de segurança recomendadas antes da aplicação do produto’. .

A ação do Ministério Público e as duas sentenças judiciais mostram a importância e a necessidade de uma prática jornalística investigativa nas áreas de ciência, tecnologia, saúde e meio ambiente. Mais que isso, mostram a necessidade de jornalistas especializados, como José Alberto Gonçalves Pereira, capazes de identificarem o que é notícia e de não titubearem nem serem levados pela dissimulação das fontes especializadas. E mostram também a necessidade da determinação e da persistência do profissional de imprensa diante da apatia, do conformismo e da banalização dos fatos.

Sob o pretexto de não parecerem engajados, muitos jornalistas e veículos de comunicação têm sistematicamente se limitado a consultas protocolares dos personagens das notícias, recusando-se a aprofundar nos assuntos, a pesquisar o tema, a questionar as fontes, a usar seu discernimento. E, acima de tudo, recusando-se ao compromisso de lealdade com os cidadãos, que é a fonte da credibilidade que deve ser o principal elemento da reputação do profissional de imprensa e o patrimônio básico de todo veículo de comunicação.

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Clique aqui para ler a íntegra da sentença do juiz federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior.

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Jornalista, ex-editor-chefe da revista Galileu