Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Com amigos assim…

O jornalismo independente de qualidade (JIQ) é cada vez mais necessário. Aquele jornalismo que faz os checks and balances sobre governos, empresas, ONGs e todos os que têm algum poder. As empresas jornalísticas conseguem cumprir esse papel ao viabilizar os ambientes nos quais os jornalistas podem apurar e editar as informações que são capazes de mudar e derrubar governos e fazer com que empresas tenham que agir de forma a respeitar direitos dos consumidores. Difícil imaginar as sociedades abertas sem a existência de estruturas empresariais independentes que financiem toda a produção jornalística e sejam capazes de resistir às pressões dos poderosos, como no nosso país fez a Veja em tantos episódios, sob a liderança do já saudoso Roberto Civita.

Uma recente matéria nesta Revista de Jornalismo ESPM (“A verdade dos fatos”, de John Sullivan, publicada na edição nº 1) comprovou a constante piora na proporção entre os jornalistas trabalhando em redações independentes e os que atuam em assessorias de imprensa. Esse mesmo preocupante texto mostrava que, na web, é crescente a proporção de conteúdo reproduzido versus a produção original veiculada.

Alguns dos jornais mais antigos e influentes do mundo quebraram (como o Rocky Mountain News, que encerrou as atividades em 2009) ou trocaram de mãos (caso do Los Angeles Times), em geral para as de empresários querendo salvar instituições importantes para sua comunidade ou tentando beneficiar-se do que sobrou do prestígio de outrora. Na busca pela sobrevivência, não se almejam somente aumentos de produtividade, melhoria de processos ou de integração entre as diferentes plataformas de conteúdo, mas se reduz também o número de repórteres, editores e correspondentes, corta-se na carne a capacidade de produzir o necessário e valioso JIQ.

Os modelos de negócio dessas empresas foram seriamente abalados pela mudança de hábitos causada pelo uso de novas tecnologias, que facilitam o consumo de notícias de forma instantânea em vários tipos de aparatos. Se no início da revolução empreendida pela web se acreditava que a publicidade seria capaz de sustentar o JIQ, creio que hoje sejam poucos os que veem o futuro desse setor sem que, como parte da solução, uma expressiva parcela dos leitores de uma publicação pague pelo conteúdo que consome. Assim como tem feito com sucesso o New York Times e outras centenas de publicações nos Estados Unidos, Europa e agora no Brasil.

O protagonista desta nova era é o uso praticamente universal das ferramentas de busca, em especial o Google, que possibilitou às novas gerações se habituarem à ideia de que as informações e notícias são um bem quase público. E, como o ar que respiramos, grátis.

Modelo lucrativo

O genial sistema de buscas que foi criado pelo Google, que indexa quase tudo o que circula na web, somado a um produto de publicidade, os famosos links patrocinados relacionados com notícias e informações – que respondem por cerca de 95% de sua receita (excluindo de seu balanço as receitas da Motorola, consolidadas em 2012) –, gera um modelo muito lucrativo, que valoriza a companhia em mais de US$ 300 bilhões. Algum problema nisso? Não e sim. Não, porque presta um verdadeiro serviço a bilhões de humanos (eu mesmo me servi do Google ao escrever este artigo). Mas sim, pois o Google e seus congêneres usam o conteúdo das empresas jornalísticas, entre outros produtores de conteúdo, como a matéria-prima principal do produto oferecido, que é a boa e útil informação de graça.

Outros meios sempre ofereceram informação gratuitamente aos usuários, como as TVs abertas, financiadas pela veiculação de publicidade. Mas essas organizações custearam a produção de seu conteúdo e não usam o conteúdo produzido por outros sem pagar por isso!

É um problema que fica cada vez mais grave com o passar do tempo, já que as marcas dos jornais vão perdendo relevância e a do Google se valoriza, ao ser o provedor gratuito das informações para o mundo virtual. Existem pesquisas que mostram leitores, a partir do Google, consumindo notícias de um determinado assunto, clicando em vários sites e voltando à página da busca inicial, sem serem capazes de se lembrar em qual site leram a notícia. Ou seja, quem “dá” a notícia para o leitor é o Google e não O Globo ou a Folha de S.Paulo, sites nos quais o leitor teria clicado neste exemplo.

Google ganha, jornais perdem

As marcas perdem, o Google ganha e a ideia do mundo grátis fica reforçada. E de fato o Google não gerou um cliente para esses jornais, tendo simplesmente prestado um serviço à custa do conteúdo dos jornais. Mas os jornais não precisam ser capazes de cobrar pelo consumo de seu conteúdo para sobreviver? Ou alguém ainda acredita que a publicidade digital, vendida por preços cada vez mais baixos em função de estoques cada vez maiores de page-impressions, vai pagar o custo do JIQ, dado que o modelo de negócios do impresso não pode mais arcar com essa conta? Na balança de custo e de benefícios para os jornais e para o Google há um claro desequilíbrio e, nada mudando, o futuro aponta para uma piora desse quadro.

Vamos analisar o que poderia ser o risco das empresas jornalísticas ao não terem mais o tráfego oriundo da “ajuda” do Google. Sabemos que, quanto menos relevante for a marca da publicação no mundo real, maior é a importância do tráfego gerado pelos buscadores para o site. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) tabulou os dados das maiores marcas de jornais e, na média, 20% do tráfego vem do Google. Contudo, desse conjunto, uma boa parte (no Lancenet! chega a mais de 50%) vem da digitação do nome do jornal ou da URL do site, caso em que o buscador foi usado como browser. Nos maiores sites, então, o que se “perderia” seria muito pouco.

Nos jornais menores, os buscadores chegam a representar 50% do tráfego do site. Mas esses sites locais são os que têm a maior força entre seus leitores, são eles que produzem conteúdos relevantes e exclusivos de suas comunidades e, portanto, têm potencial de encontrar formas de valorizar essa posição de mercado. Não é por outra crença que o megainvestidor Warren Buffett tem comprado justamente esse tipo de publicação, e não os títulos mais abrangentes.

Com efeito, o dano real causado por uma eventual ausência do buscador não é significativo, mesmo para os sites menores, considerando que o que essa audiência extra gera de receita para os jornais é marginal ou zero. E ainda aumenta a oferta de inventário a ser vendido, o que exerce mais pressão negativa sobre os preços. A ausência dos melhores produtores de conteúdo, os mais relevantes pelo próprio Google, faria ainda com que a tal oferta “grátis” fosse mais pobre. Ou seja, mais chance de o usuário que busca qualidade ficar mais propenso a pagar uma assinatura para acessar um site. Já existem 17 milhões de lares que passaram a pagar por TV, quando a cultura anterior era a de que TV deveria ser grátis. E os serviços de música, como o Spotify, conquistam cada vez mais assinantes.

Alguns jornais têm acordos de venda de publicidade nos seus sites com o Google. No entanto, também com base na consulta feita pela ANJ – entidade da qual sou diretor, embora não esteja escrevendo como tal, e com a qual concordo em relação à maioria das práticas e políticas, sempre no espírito de contribuir para um setor tão importante para o Brasil –, observa-se que, mesmo tendo essas parcerias há anos, ainda são insignificantes as receitas faturadas pelas empresas. Não pagam nem o custo de um jornalista sênior numa redação.

Quando os jornais brasileiros decidiram sair do Google News, em 2011, embora esse importante ato só tenha ganhado publicidade em 2012, não houve prejuízos em audiência para os seus sites, que seguiram suas tendências de crescimento nos 12 meses seguintes. Nesse mesmo período, o serviço do Google perdeu fatia significativa de sua audiência no Brasil e não foi pior por terem os portais informativos permanecido no Google News.

Historicamente, os jornais de qualidade sempre ocuparam uma fatia pequena de mercado em audiência. Construíram seus modelos de negócio baseados na alta qualificação dos leitores e na relação quase exclusiva de fidelidade de marca e de tempo dedicado à leitura. Somente as elites liam jornais (existem também os populares, mas nunca tiveram muita publicidade e vivem da venda avulsa), e estes conseguiam vender anúncios a preços desproporcionais em relação ao número limitado de leitores. Assim, conseguiam pagar pelo JIQ, ter lucro e ser sustentáveis.

A eliminação de fronteiras físicas e a enorme penetração da web no mundo propiciaram paradoxalmente aos jornais, ainda que muito desvalorizados como negócio na atualidade, uma audiência nunca antes alcançada. Seja o Estadão, o New York Times ou o Guardian, todos têm hoje muito mais leitores do que jamais tiveram no mundo do papel. Há anos estão numa corrida para aumentar esse alcance e, para isso, investiram muito, mesmo sem ter um modelo econômico claro. Seus sites são modernos, atraentes e informativos, mas incapazes de gerar recursos para pagar toda a conta das redações que produzem os conteúdos publicados. Se vivessem só do digital, seriam produtos muito frágeis.

Não podemos dizer que foi um erro, dado que a grandeza das marcas no mundo digital foi construída com base nesses investimentos. Em um mundo tão incerto, em que ter alguma crença sobre o futuro parece desinformação (e pode ser esse o meu caso), minha visão é que o erro foi termos acreditado que o extraordinário aumento de alcance mudaria a essência de nossa natureza, que é a de ser muito importante para poucos e não para todos. A nossa habilidade sempre foi a de extrairmos bastante valor de uma audiência limitada (sem ter que transportar átomos, podemos também aumentar a quantidade de fiéis leitores), mas que nos valoriza e com quem nossas marcas têm uma relação de proximidade e confiança. A lista de tarefas à nossa frente não é pequena nem pouco desafiadora.

Devemos ampliar o uso de tecnologias, conhecer cada vez mais nossos clientes e seus hábitos de consumo e de navegação, sermos capazes de oferecer os conteúdos a tempo em quaisquer das plataformas de hoje e do futuro, mantendo nossa utilidade para sua vida. Contudo, sem descuidar de sermos a principal fonte de informação interessante e confiável, oferecendo notícia e contexto, opinião e análise, e sendo capazes de editar ou “curar” o que acontece no mundo. Para isso não se pode desinvestir nas redações, pois as marcas das empresas jornalísticas se sustentam com base no nível do conteúdo gerado.

Conteúdo tem de gerar receita

Para garantir o futuro das empresas jornalísticas, não satisfaz somente conquistar leitores pagantes, mas é preciso passar pelos anunciantes, com quem devemos ser capazes de criar soluções e projetos criativos e eficazes para gerar os retornos desejados. Esse objetivo também depende do uso intensivo de tecnologia e de termos os bancos de dados de nossos leitores bem estruturados – sabendo o que eles nos autorizam ou não fazer com esse patrimônio. Fora isso, existem muitas oportunidades de criar outras fontes de faturamento, próprias ou em parcerias, usando os gostos e hábitos de nossos leitores e a confiança que nossas marcas inspiram.

Não é uma receita fácil para as empresas jornalísticas, mas é o que é possível se descortinar neste momento de tão baixa visibilidade quanto ao futuro.

O que não se pode permitir é que as marcas dos jornais (e também das revistas) percam valor no mundo que elas devem dominar, que é o da oferta do JIQ e da relação que existe com os leitores a partir daí.

A tecnologia é nossa aliada e não precisamos nem temê-la nem nos deixar seduzir em excesso pelos modismos, que nos podem tirar de nossa verdadeira área de competência, na qual agregamos valor para a sociedade: a produção e a oferta de conteúdos jornalísticos de qualidade.

Na análise que faço da atualidade, tanto o Facebook quanto o Youtube devem ser examinados com grande nível de cautela, não somente o Google. O FB, agora cada vez mais controlador do que chega a cada um dos “curtidores” de nossas fan pages, é também cada vez mais um competidor no mercado publicitário, além de se beneficiar tremendamente da nossa guerra pela audiência e da hipercompetição entre nós mesmos. Devemos tentar usar essa ferramenta poderosa para objetivos bem claros, seja simplesmente para o relacionamento com o usuário, seja para atrair o consumo de conteúdo nos nossos próprios ambientes, com nosso controle sobre nossa marca e com possibilidade de gerar receitas para nós e não para o FB, como é hoje.

O Youtube oferece uma plataforma de muita audiência, mas compromete nossa própria capacidade de gerar receitas de patrocínios e anúncios em vídeos, por oferecer volumes a preços muito baixos para os mesmos clientes dos jornais. Essa é a modalidade que mais cresce no mundo digital neste momento, portanto é crítico que as empresas se capacitem para oferecer JIQ em vídeo com a relevância que temos no mundo impresso.

O que essas empresas, Google, Youtube e Facebook, têm em comum, na sua relação com organizações jornalísticas, é o fato de terem construído modelos muito sofisticados em conquistar o espectro da modernidade, valorizando suas marcas. Fazem isso usando com inteligência a estrutura de nossa indústria, fragmentada e hipercompetitiva, para nos fazer crer que, ao darmos nossos conteúdos (ainda sustentados pelos leitores do impresso) para eles oferecerem aos seus clientes gratuitamente, estamos fazendo um bom negócio para nós.

Se nos concentrarmos em melhor rentabilizar o nosso negócio-chave com nossos leitores fiéis, poderemos encontrar uma saída. Não creio que isso seja possível no plano de cada empresa, mas somente se houver decisões coletivas, com clareza, e lideranças capazes de correr riscos, por acreditar que mais arriscado é seguirmos praticando algo que não tem futuro: permitir o uso de nossos conteúdos por outras empresas, sem que sejamos remunerados por isso de forma adequada.

Os portais informativos, full service, são mais uma jabuticaba pátria. Os que tiveram mais sucesso foram criados por empresas jornalísticas e têm grande presença no mercado, como desconheço que exista em outro país. Faturam bastante publicidade e têm redações grandes e qualificadas, constituindo-se em marcas muito relevantes e que conquistaram credibilidade como fontes de informação.

Corrida para o abatedouro

Portanto, são um concorrente direto dos jornais, dado que oferecem conteúdos de qualidade e têm orçamentos bem substantivos nessa área. A continuidade do modelo que implantaram, o de oferecer conteúdos de forma gratuita, soma um desafio adicional aos jornais e revistas. Estes precisam ser ainda mais relevantes para conquistarem leitores pagantes no mundo digital. Seus conteúdos, como escrito acima, têm que ter um valor bem alto e diferenciado para viabilizar a conquista de assinantes em quantidades suficientes.

Mas os portais, assim como os jornais, tampouco conseguem escapar do que chamo “corrida para o abatedouro” quando, ao focarem somente a competição entre si, acabam por atuar em total sintonia com os objetivos estratégicos do Google, entre outros. A recente mudança de política do Globo.com com relação ao FB, espero, pode ser um sinal de outras mudanças. Os maiores portais brasileiros, como UOL e Globo.com, já têm um alcance de mais de 90% da internet brasileira, sendo os líderes de seu mercado nesse quesito. O Google é o maior competidor por publicidade e, mesmo assim, por serem grandes geradores de conteúdo, os portais acabam por ser grandes provedores de informações indexadas pelo Google, só sendo superados pelo agregado dos jornais e revistas.

O überbuscador, que se recusa a divulgar seus dados de receita no país, tem o faturamento estimado pelo mercado em mais de 50% do total de publicidade digital. Portanto, é um competidor ainda mais direto dos portais do que dos jornais, dado o porte e o tipo de anunciante que disputam.

Por tudo isso, todo crédito deve ser dado à brilhante estratégia do Google, que tem todos os méritos ao perseguir seus objetivos de forma competente, com habilidade e bolsos muito bem forrados. É isso que lhe permite promover cortinas de fumaça, como os recentes acordos com os jornais na Bélgica e na França, num caso interrompendo um processo judicial e no outro um movimento político que poderia levar a uma nova lei restritiva. Nos dois países, com o comprometimento de muito pouco dinheiro, e nenhum reconhecimento de que deve pagar pelo uso do conteúdo de terceiros, que é a base de seu negócio. Afinal, quem deveria estar impedindo esse uso? Os donos do conteúdo não têm clareza do que devem fazer e ainda estão iludidos pelas métricas dos milhões de pageviews que remuneram muitos executivos dos jornais, mas que não são aceitos como moeda para pagar, por exemplo, os salários dos jornalistas que produzem os conteúdos mais relevantes para a sociedade, ontem, hoje e amanhã.

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Walter de Mattos Junior é fundador e editor do Grupo Lance!