Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A aventura de uma entrevista cabralina

Em dezembro de 1997, aventurei-me na empreitada de entrevistar um dos grandes escritores do século 20, João Cabral de Melo Neto, o precursor de uma nova forma de fazer e pensar a poesia no Brasil: que refutava os sentimentalismos e se baseava na técnica, no fazer poético mais cerebral. Por isso, adorava fazer cálculos ao escrever os poemas e era tido como o engenheiro da poesia. Ele falou um pouco sobre essas técnicas na entrevista que me concedeu, publicada no capítulo 6 de meu mais recente livro, Cartas ao poeta dormindo – João Cabral de Melo Neto (Thesaurus Editora). Entrevistá-lo foi uma jornada e tanto.

Fui ao Rio, fiquei num hotel modesto, nas proximidades do apartamento dele, no Flamengo. Logo após deixar minha mochila no quarto e tomar um bom banho, fui para a entrevista. O fotógrafo que eu havia contratado me encontrou na hora marcada, por volta das 14h, no térreo. Toquei a campainha, ansioso. Como estaria o humor do grande poeta, eu me perguntava?

João Cabral atendeu a porta, e me pediu para entrar. A sala espaçosa, além dos móveis clássicos e da linda vista da sacada, chamava atenção pela tela com o retrato de meu poeta predileto, Manoel Bandeira. Durante a entrevista, me disse que eles eram primos. Bela linhagem com poesia no DNA, pensei. Não só poesia, afinal, ela também era irmão do historiador Evaldo Cabral de Melo e primo de outros dois grandes intelectuais: Mauro Mota e Gilberto Freyre (por parte de mãe).

Para não esquecer

Ele estava com grave problema nos olhos, uma espécie de catarata, e por isso enxergava pouco. Estava mal-humorado e deprimido por causa desse problema de saúde. Adorava ler e agora se via privado do maior prazer que possuía. Disse-me que estava cansado e que não pretendia que a entrevista demorasse muito. Aliás, como eu havia feito meu dever de casa, já sabia que uma famosa dor de cabeça o acompanhou a vida toda. Motivo mais que suficiente para que o mau humor se manifestasse. Isso, e alguma derrota do time do coração dele, o América Football Club (do Rio), é claro.

Adorava ler e agora se via privado do maior prazer dele. Peguei as anotações e fui fazendo minhas perguntas. Não raro, errei feio durante a entrevista. Usei como base diversas críticas e textos escritos sobre ele para aprofundar minhas indagações, incluindo prefácios de livros dele feitos pela esposa, em edições como a obra completa (de capa verde pomposa) da Editora Aguilar. Quase sempre ele contestava as informações que eu trazia como fidedignas, incluindo as explicações de Marly de Oliveira. Perguntava quem havia falado tais disparates, eu preferi não dizer e ir adiante.

Todas as vezes que eu tentava conseguir informações de cunho mais pessoal, ele reclamava, brigava mesmo e dizia que eu “fazia cada pergunta sem noção”. Aliado a um eterno vício de repetição (falava “compreende?” o tempo todo) e esquivo, tentou o máximo não falar de si, mas sim, da obra. Eu queria saber de ambos. Foi duro, mas consegui extrair declarações dele como confidências. Eu delirava quando conseguia romper a dura resistência Queria descobrir o homem, acima do mito. Numa reportagem, perseguimos o inusitado, o lado humano que reveste a construção simbólica da imagem pública, que lhe dá força.

Conseguimos fazer várias fotos dele, inclusive na famosa sacada. E de quebra, o precioso autógrafo, feito com dificuldade, pelo gesto mecânico de quem tantas vezes repetiu aquele ato.

Um dia para não mais sair da memória, um dia cabralino.

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Marcos Linhares é jornalista e escritor com 11 livros publicados e finalista em Nova York do International Latino Book Awards 2013, com o livro de não ficção Não existe crime perfeito