Um dia, no já remotíssimo ano de 1991, recebi um telefonema do Merval. Evandro Carlos de Andrade, editor-chefe do Globo, queria falar comigo. Nessa época, eu trabalhava no Jornal do Brasil. Tinha acabado de encerrar uma breve carreira de crítica de televisão, inventada pelo Zuenir, e, desde 1987, escrevia uma coluna de informática, tema que ninguém no JB levava a sério. No Globo, porém, a história era outra: o Evandro queria que eu fizesse não só a coluna, como um caderno inteiro. Mas como seria aquele caderno? Quem o faria comigo? Quando circularia? “O caderno vai ser como você achar que deve ser um caderno de informática”, disse o Evandro (e essa foi uma das frases mais lindas que ouvi na vida). A data de circulação, porém, era segredo que só me seria revelado se eu aceitasse a proposta do jornal.
Pedi uns dias para pensar. Ir para O Globo significaria uma mudança radical na minha vida. No JB, eu ia à redação quando queria, e era diretamente responsável apenas pelo que eu mesma produzia. No Globo, passaria a ter um horário de trabalho e um cargo de chefia, duas coisas que sempre me incomodaram muito. “Você pode chegar à redação à hora que quiser”, disse o Evandro. “Não quero nem saber quando você vai trabalhar. O que eu quero é um suplemento pronto na hora do fechamento.”
Era um desafio bom demais para deixar passar. Aceitei. E aí fiquei sabendo a data de circulação do novo caderno: dia 4 de março de 1991. Estávamos na segunda semana de fevereiro. Quer dizer: eu tinha cerca de 15 dias para criar um caderno, encontrar uma equipe que pudesse escrever sobre aquele assunto então espinhoso de forma compreensível e, last but not least, aprender a usar o sistema do jornal, que era completamente diferente daquele do JB.
Às favas
Nem tive tempo para me apavorar porque, de um momento para o outro, todo o tempo que existia na minha vida desapareceu num passe de mágica. Consegui convencer minha amiga Cristina De Luca, uma das poucas jornalistas de tecnologia da época, a trocar um sólido emprego na iniciativa privada por uma aventura que eu mesma não sabia aonde ia dar; convoquei amigos que até então eu só conhecia de BBS, como o Cat e o Piropo; e fomos à luta.
Não havia lugar físico para a equipe na redação, onde havia, como sempre, mais gente do que espaço; mas sobrava boa vontade, e nos arranjaram um cantinho provisório (que por pouco não virou permanente). Assim que cheguei, fui apresentada ao diagramador que trabalharia conosco, um cara mais ou menos da minha idade, de rabo de cavalo, chamado Leonardo Drummond. Caberia a ele dar forma ao caderno. São os diagramadores que desenham as páginas dos jornais e das revistas e nelas arrumam os vários elementos que as compõem, dos títulos às legendas das fotos.
Mais tarde, quando já conhecia todo mundo da redação, dei graças, em retrospecto, pela sorte que tive. Eu tinha as minhas próprias ideias de diagramação que, em muitos casos, iam frontalmente contra o projeto gráfico do jornal. Qualquer outro diagramador teria me mandado às favas, mas o Leo, cheio de calma, riscava e tornava a riscar, buscando um meio-termo que não fugisse demais às características da casa. Ainda assim, nas primeiras semanas de trabalho conjunto, eu, ingrata, achava que ele estava me sabotando.
Éramos todos inocentes
Com o passar do tempo, perdemos a desconfiança inicial que tivemos um do outro. Eu percebi que ele não se apegava às normas do projeto gráfico por insegurança ou por falta de coragem de ousar, e ele percebeu que eu percebi. Viramos cúmplices. Ao longo da história do caderninho, que sempre foi uma alegria fazer, subvertemos muitas normas, e fugimos um bocado do manual. Chegamos a esconder páginas para que não fossem vistas pela chefia até serem baixadas, e depois nos divertíamos feito crianças, dando risadas no café, no fim da noite.
Leo era extremamente criativo. Encontrava soluções incríveis para problemas que, às vezes, pareciam insolúveis. Essa criatividade ia além do desenho das páginas: alguns dos nossos melhores títulos foram dados por ele. Não à toa, era o diagramador favorito da Mara Caballero, que fechava o Ela mais ou menos junto com o Info etc., às quintas e sextas. O resultado é que, por causa dele, havia um permanente cabo-de-guerra entre as duas equipes. Leozinho só podia pegar o nosso caderno depois de fechar o Ela. A determinação fazia sentido: o Ela circula aos sábados, o Info etc. circulava às segundas. Mas alguém lá queria saber disso?
Mara, sempre meticulosa, trabalhava as suas páginas no capricho, sem um pingo de pressa; Cristina De Luca, adiantando o Info etc., subia as paredes de costas, e vinha se queixar comigo, indignada. Às vezes eu levava a questão à chefia, às vezes não. O fato é que o problema não tinha solução: as páginas eram muitas, e o Leozinho era um só. O tempo se encarregou de resolver a questão. A tecnologia se integrou de tal forma à vida das pessoas que abordá-la num caderno semanal deixou de fazer sentido. O Info etc. acabou, e o Ela, já sem a querida Mara, ficou com o Leo.
Isso tudo aconteceu há muitas e muitas luas, quando ainda não sabíamos o que já não podemos ignorar. Éramos todos inocentes.
******
Cora Rónai é colunista do O Globo