Quadros berlinenses: poesia, ou Berliner Bilder: Gedichte, obra bilíngue de João Claudio Arendt (autor) e Sarita Brandt (tradutora), foi publicada no primeiro semestre de 2013 pela Editora Maneco, de Caxias do Sul, com lançamentos no Rio do Grande Sul e Berlim. O ponto de partida do livro é a própria situação do autor, a vida de um intelectual emigrado, na posição privilegiada de observante intercultural. Durante a sua estada na capital alemã, ao longo de 2011, para a realização de pesquisa de pós-doutorado no Instituto de Estudos Latino Americanos da Freie Universität Berlin, João Claudio Arendt registrou poeticamente o que pôde captar em suas perambulações urbanas.
O poeta renunciou à tarefa do tradutor, assumido com competência por Sarita Brandt, criadora dos versos alemães de Berliner Bilder. A pontífice – construtora de pontes, como diria Vilém Flusser – apresenta um trabalho de tradução esmerado, que salta o abismo e supera a barreira entre as línguas portuguesa e alemã. Ainda que a tarefa do tradutor possa ser entendida como uma tarefa própria, podendo ser diferenciada com precisão da do poeta, como sugere Walter Benjamin, fica a sensação de que Arendt, fluente em alemão, poderia ter praticado a autotradução como método de trabalho. Ele poderia, assim, como ensina Flusser, converter a intraduzibilidade fundamental das línguas na verdadeira pré-condição da sua própria escrita.
Ao escrever e publicar seus versos,dentre os quais encontramos muitos haikais e alguns poemas com metrificações diversas,o poeta elaborasuasvivências na capital alemã. Na medida em que o conteúdo social sedimenta-se na forma da obra literária, ao abordar uma individualidade, Quadros berlinensesaponta elementos referentes a uma coletividade.
Indivíduo solitário
No “Pré-Texto”, Arendt explica que “Com estes poemas em edição bilíngue, não procuro explicar a cidade, mas dar ao leitor a possibilidade de, como eu, senti-la em alguns de seus matizes naturais e culturais”. Isto posto, salta diante do leitor a seguinte indagação: os poemas reunidos em Quadros Berlinenses compõem uma Erfahrung (experiência, memória de uma passagem, de uma viagem, algo por ser novamente e sempre de novo experimentado) ou uma Erlebnis (vivência, matéria privada e frágil, desconectada de significação para outrem)?
Erfahrung, experiência, conceito utilizado por Walter Benjamin, provém do verbo fahren, que apresenta os sentidos de andar, levar, transportar, conduzir, guiar. Na condição de alguém que vem de longe – viajante – Arendt nos apresenta a sua experiência como percurso.Detectando, registrando e ampliando locais de memória como as avenidas Ku’damm e Unter den Linden, o cemitério de São Mateus, a praça Heinrichplatz, o parque Tiergarten, o lago Wannsee, o campo de concentração Sachsenhausen e o rio Spree, o livro Quadros berlinensescarrega consigo as marcas de um contexto social.
Com Quadros berlinenses: poesia, ou, Berliner Bilder: Gedichte, Arendt procura apropriar-se de um patrimônio cultural compartilhável – “dialoguei antes com alguns velhos conhecidos, esses, sim, merecedores de um nominativo: Brecht, Kafka, Rilke, Schiller, Goethe…” – e assegurar a produção da experiência em um sentido pleno (Erfahrung), enfrentando as condições adversas do tempo da Erlebnis, da vivência do indivíduo solitário que vive por reflexos e não dispõe de tempo para formar sua experiência no sentido pleno, impossibilitando a obtenção de uma imagem de si.
Cachorro fantasiado de passista
Numa época em que a memória constitui um assunto difícil, privado e fragmentado, e proliferam aspirantes a poetas, autores de versos toscos e de fácil feitura, pobres em experiências comunicáveis, João Claudio Arendt, que em 2009 publicou o premiado Plural da Ausência, insere-se no seleto grupo dos poetas brasileiros do século 21 que apresentam apuro da linguagem e assinatura forte.
Que a vigência do projeto “Alemanha + Brasil 2013-2014”, cujo objetivo é ampliar e aprofundar as relações entre os dois países, concedendo maior visibilidade à cooperação e incentivando novas parcerias, impulsione a recepção de Quadros berlinenses/Berliner Bilder, mostrando ao mundo que a literatura brasileira contemporânea não se parece nada com um cachorro fantasiado como uma passista de escola de samba, como aparece no cartaz da Feira do Livro de Frankfurt de 2013, que tem o Brasil como país convidado de honra.
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Vitor Cei é doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador visitante na Universidade Livre de Berlim