Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A diferença entre a cidadania almejada e a realidade cruel

O programa de entrevistas da NBR de sexta-feira (4/10), às 6h30, no canal Saúde/Fiocruz, ofereceu uma realidade cortante, ainda pouco comum na TV fechada brasileira: a diferença brutal entre a cidadania pretendida e veiculada pela mídia e a realidade oferecida por hábitos e costumes sociais persistentes no país.

Uma conduta comum às praticadas nos programas jornalísticos sobre cidadania exibidos nos últimos 20 anos pelas TV brasileira, seja comercial ou fechada, é excluir ou sequer mencionar o corte social de 1964-88 (do golpe militar à Constituinte), como se isso bastasse para “esquecer” um dos períodos mais cruéis da política brasileira. É como se esse período tivesse sido engolido pela história. Como, se os parentes dos desaparecidos e assassinados não tiveram ainda o direito de sepultá-los?

Após a promulgação da Constituição cidadã, como a chamava Ulysses Guimarães, o país viveu anos a fio disseminando os seus direitos, tão notável foi a ausência e o esmagamento deles pela ditadura militar. Esse fato acabou criando uma cultura de direitos que, contraditoriamente, transformou-se em conduta impiedosa com os deveres. Outra: o Estado passou a ser responsável por tudo, como se as pessoas não ocupassem nele o seu espaço de cidadania.

A natureza da criminalidade

Por que as pessoas jogam lixo na rua, entupindo canais e esgotos, deixando de acondicioná-lo no lugar certo para a coleta sistemática? Por que as pessoas passeiam com seus cães emporcalhando as ruas como se essas localidades fossem os lugares mais desprezíveis do mundo? A recente aplicação de multas no Rio por lixos atirados a esmo pela população vai resolver o problema? “Não”, responderam uníssonos especialistas convidados pelo programa. Faltou a todos eles completarem: caso não se transforme a educação ambiental, hoje uma matéria transversal permanente no curriculum escolar dos países desenvolvidos, em tema obrigatório no curriculum do ensino fundamental ao médio, a convivência com o lixo ainda vai dar muita dor de cabeça ao país.

A brutal transformação de hábitos e costumes na sociedade brasileira, guiada por uma desorientação socioeducativa avassaladora, entremeada, claro, pelo corte sócio-político-ideológico, produziu consequências espantosas e o caso mais recente que botou de cabeça para baixo alguns analistas do cenário socioeducativo brasileiro ocorreu em São Paulo, onde todo mundo ficou perplexo quando o menino Marcelo, de 14 anos, matou pai, mãe, avó e tia-avó sem ser portador de nenhuma psicopatia. O que esperar de um menor que, na idade de ter a vida normal de uma criança (estudar, brincar, passear, jogar bola com os colegas) aprende a atirar, aprende artes marciais, é exercitado em maldades humanas? Tantas foram as dúvidas lançadas por todos de que Marcelo seria incapaz de cometer tantos homicídios e, ainda por cima, suicidar-se que a própria PM acabou se entregando às suas próprias dúvidas: esgotou todos os exames periciais para chegar a dura realidade.

As exposições dos entrevistados da NBR nem mencionam a natureza da atual onda de criminalidade do país. Nem precisava: o envolvimento de menores está diretamente vinculado às rupturas sociais ocorridas no miolo das famílias brasileiras. Mas certamente esse poderá ser o tema de um futuro programa.

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Reinaldo Cabral é jornalista e escritor