Nem todas as atenções dos últimos dias se concentraram nas bodas de Marina e Eduardo e na avaliação das razias dos black blocs. Nas mídias e conversas, as dúvidas e controvérsias geradas pela adesão de Marina ao PSB e o racha entre os que apoiam e execram a ação dos nossos squadristi mascarados tiveram de dividir o proscênio com duas celeumas envolvendo escritores e artistas.
Ambas tiveram como palco privilegiado a Feira de Livros de Frankfurt, na Alemanha, onde o Brasil foi homenageado ao custo de R$ 18,9 milhões aos cofres públicos (“Se os empresários do mercado editorial brasileiro precisassem da homenagem da feira, poderiam recebê-la, com o dinheiro deles”, criticou o comentarista político Elio Gaspari, que também sugeriu que se aplicasse a dinheirama da viúva na restauração da Biblioteca Nacional). A comitiva brasileira mal tivera tempo de curtir a maioria dos estandes da Buchmesse quando os escritores Paulo Coelho e Paulo Lins questionaram a representatividade do grupo de autores selecionados pelo governo brasileiro. Coelho exigia a presença de mais ficcionistas best-sellers e, indignado, desembarcou do “trem da alegria”. Lins criticou a ausência de outros autores negros, mas permaneceu em seu vagão.
A segunda celeuma, a rigor, não eclodiu em Frankfurt, mas lá encontrou uma providencial câmara de eco. De um lado, sete músicos (Caetano Veloso, Chico Buarque, Roberto e Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Djavan) tentando impor limites à produção de biografias não autorizadas; de outro, um vasto contingente de biógrafos, escritores, editores, intelectuais, atores e mesmo músicos contrários a qualquer obstáculo que possa inibir ou restringir a liberdade de expressão. A cisão não é recente, mas atingiu seu ponto de ebulição no fim da semana retrasada, com uma entrevista da empresária e ex-mulher de Caetano Paula Lavigne, ideóloga e líder da cruzada contra o livre exercício do biografismo. Partindo do princípio de que o Código Civil protege igualmente o público e o privado, ela e seus templários reivindicam uma compatibilização do direito constitucional à liberdade de expressão com o direito à “inviolabilidade da vida privada e da intimidade”, como se isso fosse exequível sem ferir, com letais consequências, o princípio maior da livre manifestação do pensamento.
Além de exigir autorização para qualquer biografia, o grupo, autodenominado Procure Saber, sugere o pagamento de royalties aos biografados ou seus herdeiros. Isso ou a não comercialização da obra. Se distribuída gratuitamente, tudo bem, deduzo; até aleivosias seriam relevadas, presumo. Foi um corolário dessa barganha que os advogados das filhas de Garrincha impuseram ao biógrafo Ruy Castro e à Companhia das Letras: primeiro, tentaram proibir a comercialização de Estrela Solitária, por “danos morais” à imagem do jogador, afinal entubados mediante uma graninha.
Lenha na fogueira
Pegou muito mal essa cobrança de “direitos autorais sobre a vida pessoal” de cada um, até porque derivada de um raciocínio canhestro. À luz da história e da biografia, figuras públicas não têm vida privada. A cantora Nana Caymmi foi direto ao ponto: “Vida de artista é vida pública”. Proibir biografia, segundo ela, “é falta do que fazer”. Outro raciocínio canhestro: “Editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação”. Assim falou Djavan, de olho gordo numa fonte de renda suplementar. Uma boa biografia dá muito trabalho, consome anos, às vezes décadas, de pesquisa e finalização; o melhor que os artistas têm a fazer, recomenda Nana Caymmi, é “se sentir honrados por ter gente interessada na vida deles”.
A biografia de Clarice Lispector custou cinco anos de intensa e dispendiosa pesquisa ao americano Benjamin Moser. Seria insultuoso sequer insinuar que ele só (ou sobretudo) a escreveu pensando nos cifrões sonhados por Djavan e demais faniqueiros (Wilson das Neves, Pedro Luís, Nasi) agregados à brigada do “Procure Faturar”.
Em carta aberta a Caetano, publicada na Folha de S. Paulo, Moser confessou-se “constrangido” com as declarações do compositor, para ele, “escandalosas, indignas de uma pessoa que tanto tem dado para a cultura do Brasil”, lembrou ao amigo que liberdade de expressão, além de “absoluta”, não existe “para proteger elogios”, e o estimulou a não se transformar num “velho coronel”.
Na pororoca de insultos e chacotas que de imediato se seguiu nas redes sociais, as cobranças foram mais incisivas e impiedosas. “Censores!”, “Imorais!”, “Gananciosos!” – e não eram apenas cidadãos comuns manifestando-se contra a ditadura da biografia chapa-branca, mas também intelectuais e companheiros de ofício de Caetano & cia. No meio do fogo cruzado apareceu um gaiato, que rogou ao Chico, “afaste de nós esse cale-se”. Outro, não menos irreverente, cobrou de Caetano: “Desde quando não é mais proibido proibir?”
A um retwitt da colunista da Folha S. Paulo Mônica Bergamo, Lavigne reagiu com três bombásticos adjetivos: “chata, recalcada e encalhada”. Desconheço o que pensava da jornalista quando de sua coluna se beneficiou no passado. A propósito, não seria pedir notas a colunistas uma forma de invasão da privacidade, uma espécie de bullying marqueteiro?
Na Feira de Frankfurt, um manifesto a favor dos biógrafos e uma palestra do historiador Laurentino Gomes puseram mais lenha na fogueira, que ainda ardia na sexta-feira. Como poderá arder por mais algum tempo, talvez seja uma boa imitar o fotógrafo Leo Aversa, que pensa em escrever uma autobiografia para depois processar o autor.
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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo