O debate sobre a exigência de autorização para a publicação de biografias não é novo. Desde o ano passado, espera a vez de entrar na pauta do Supremo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), ajuizada pela Associação Nacional dos Editores de Livros para arguir a legalidade de biografados, parentes e representantes proibirem, com base em artigos do Código Civil, a publicação de livros que retratem a vida de personalidades de notória vida pública. A iniciativa dos editores já abordava um problema de fato — o avanço contra o princípio da liberdade de expressão, de que foram vítimas autores de obras biográficas cuja circulação está vedada por decisões judiciais.
Portanto, trata-se de discussão antiga. Mas, nas últimas semanas, o tema ganhou força de um grande debate público, em razão de figuras de ponta da MPB — como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan e outros — terem explicitamente se alinhado ao cantor Roberto Carlos, líder da cruzada contra biografias, sob disfarce de defesa da privacidade..
Decisão cristalina
Reunidos no grupo Procure Saber, esses artistas tisnam as próprias biografias, quando nada pelo fato de, alguns deles, passarem de censurados a agentes da censura. E também por cavalgarem uma esperteza: o grupo surgiu no bojo de uma luta legítima, a defesa de direitos autorais, prerrogativa de quem cria uma obra artística, mas, sabe-se lá em nome de quê, contaminou-se com essa bizarra incursão pelo papel de juízes do que pode e do que não pode ser publicado por biógrafos. Nada diferente da censura que a ditadura lhes impunha. Os compositores do Procure Saber não representam o pensamento unânime da classe artística. Mas é inegável o seu poder de influenciar a opinião pública. Daí a importância de intelectuais que não compartilham com arroubos censórios darem seu testemunho sobre o mal que tais opiniões fazem à cultura do país. Caso, entre outros, de escritores como Ruy Castro, João Ubaldo Ribeiro, Verissimo, Benjamin Moser (autor de uma biografia de Clarice Lispector). A se registrar também a opinião do americano Jon Lee Anderson, biógrafo de Che Guevara: para ele, a censura prévia aproxima o Brasil de países repressores, disse ao GLOBO. O que está em questão não é a ideia de autores ganharem dinheiro com a fama alheia, argumento do Procure Saber, mas a liberdade de expressão. Censurar biografias empobrece a memória do país, pois, ao condicioná-las à prévia apreciação familiar, nelas cola o selo da historiografia chapa branca.
Ao julgar a Adin, o STF deve fazê-lo em coerência com decisões anteriores em que reafirmou o princípio da liberdade de expressão. Para regulá-la, existe o Código Penal, a que se pode recorrer contra jornalistas, escritores, biógrafos, etc. O tribunal precisa tomar uma decisão cristalina a respeito do choque entre o que estabelece os artigos 20 e 21 do CC, base da fúria obscurantista, e a Constituição. A prevalência, com certeza, há de ser a garantia da Carta ao direito à informação.