Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Esta é sua vida

Não é segredo, embora invisível de tão óbvio, que as matérias culturais na imprensa brasileira passaram a se pautar predominantemente, desde um tempo que talvez possa ser datado como o das duas últimas décadas, pelos itens vendagem, comportamento, moda e polêmica de superfície. A mercantilização da cultura é muito mais antiga, está longe de ser só brasileira, mas passou a ser ostensiva e causou um estrago considerável nesse país pouco letrado na média, onde os problemas são medidos com mão pesada na balança de um prato só. Por isso também o imbróglio das biografias é um pacote tão difícil de desembrulhar, e as questões aparentes não são necessariamente as que estão em questão.

Para ir diretamente ao ponto mais invocado da discórdia, sou da opinião de que a produção de biografias não deve ser regulada por um dispositivo de autorização pessoal do biografado ou sua família, como acontece atualmente. Este pode servir tanto para impedir infâmias quanto para travar o processo de conhecimento envolvido no gênero biográfico, e submetê-lo ao arbítrio pessoal dos diretamente implicados. Nada garante, em princípio, que esse arbítrio seja mais justo que o do biógrafo. A figura pública, enquanto pública, passa a fazer parte de uma narrativa coletiva que produzirá versões sobre ela, como sobre sua obra, e a circulação de biografias interessa à cultura, que não deixa de ser uma guerra de versões civilizada — quando o é. O sujeito que se tornou publicamente autor de sua vida torna-se, ao mesmo tempo, e quase na mesma medida, personagem dos outros. O quadro se complica no já citado panorama pautado pelos itens comportamento, moda, polêmica de superfície e vendagem, que afetam as duas partes, biógrafos e biografados, num mundo em que um imaginário individualista fez o gênero biográfico saltar para um plano de destaque no mercado editorial.

Na falta do dispositivo pessoal e prévio de controle da produção de biografias, tem que haver outros. A liberdade é, sim, a consciência do limite. Chico Buarque tocou num problema crucial, ao se perguntar sobre quem responsabiliza o irresponsável que atribui a alguém palavras que ele não disse, entrevistas que ele não deu, que chancelou fontes que não têm crédito e fez tudo isso verossímil. Para aumentar a novela, o exemplo que ele deu foi contestado em parte, numa demonstração em ato das disparidades entre os fatos e as versões, ao mesmo tempo em que ele tem razão no que diz sobre o jornal “Última Hora” (fui colunista em 1975, e sei bem que o jornal de 1974 era radicalmente diferente do de 1970). Independente desse caso concreto, há graus e graus entre a calúnia mais vil e a tendenciosidade incompetente. A primeira é passível de julgamento formal, embora o funcionamento jurídico brasileiro não tenha nem a contundência nem a agilidade correspondentes a essa ordem mercurial dos acontecimentos. A tendenciosidade incompetente teria que passar, por sua vez, pela regulação do próprio sistema cultural, pela sintonia crítica que deveria ser capaz de identificá-la. Algo que se tornou difícil num contexto marcado — volto ao meu refrão — por comportamento, vendagem, polêmica de superfície e moda.

Chapa marrom

Chegamos finalmente ao tema da privacidade inviolável. Ele oscila entre ser tratado no plano genérico de um princípio ideal ou no plano excessivamente defensivo do tabu (a palavra inviolável, várias vezes invocada, sugere um fechamento hermético que não é da ordem da porosidade real entre a vida pública e a vida privada, especialmente no Brasil, avassalada, é verdade, pela realidade obscena que quer devassar tudo). Ele é certamente o ponto gritante da guerra entre a liberdade de expressão confundida com liberdade de mercado (ponha nisso, para não perder o costume, polêmica de superfície, vendagem, moda e comportamento) e direito à intimidade (essa instância preciosa da vida e cada vez mais rara para todos).

Mas, se procurarmos saber, não vamos acabar achando que a novela em cartaz não está muito referida e subordinada ao segredo do Rei? O Rei sofre de uma amputação que não deve ser nomeada, como a proferição de um vazio insuportável. O silêncio público sobre a falta de que sofre o Rei é um daqueles segredos que todos conhecem. Os súditos do Rei parecem acolher o segredo do Rei, e isso faz parte do pacto íntimo que ele faz com o seu público. O Rei acha que a biografia estragaria tudo, embora o público o amasse ainda mais se ele desse a revelar o segredo que todos sabem. É doloroso, mas é a vida. O Imperador do Quinto Império da Bossa Nova, fechado em seu castelo vertiginoso e desértico, também não autoriza o livro que o consagra. Estaríamos fadados, para lutar contra a biografia chapa marrom, a viver sob o signo do silêncio imposto dos maiores, caucionado pela mais luminosa corte e coorte de músicos que esse país produziu?

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José Miguel Wisnik é colunista de O Globo