Lá se foi o tempo em que os artistas acreditavam na máxima “é proibido proibir”, pichada nos muros de Paris durante a famosa primavera de 1968. Ninguém em sã consciência pode concordar com censura prévia ou proibição às biografias. Uma biografia nada mais é do que uma reportagem alentada sobre a vida de alguém geralmente famoso. Aceitar a censura seria o mesmo que coibir a liberdade de informação num país marcado por duas longas ditaduras e até hoje carente de sua própria História.
Nessa polêmica toda, o que mais surpreende é que gente que foi perseguida e censurada no auge da ditadura militar queira agora controlar a informação. Ora, ninguém é dono da própria história, já que uma história permite várias versões. O que deveria ser feito é ampliarem-se os mecanismos legais para que possam ser punidos autores que ajam de má-fé. Quando bem feita, uma biografia ajuda a contar a História e a resgatar fatos relevantes na vida de um povo. Nesse sentido, algumas vidas se confundem com a memória nacional e conhecê-las melhor certamente nos aproximará da verdade sobre nós mesmos.
Para ser legítima, uma biografia não pode necessariamente ser autorizada ou encomendada pelo biografado, o que seria mera publicidade. Ainda mais suspeita é a autobiografia, obra promocional na qual o sujeito conta o que lhe interessa contar. Vale perguntar se torturadores e políticos corruptos – ou seus herdeiros – aprovariam a publicação de suas biografias não autorizadas.
O absurdo da situação
Seja como for, toda profissão tem bons e maus profissionais. Assim como existem compositores do porte de Gilberto Gil e Chico Buarque, também há biógrafos acima de suspeitas, como Fernando Morais e Ruy Castro. E a crença de que o biógrafo fica rico escrevendo sobre a vida alheia cai por terra ao constatarmos que literatura dá menos dinheiro que música, num país de tão poucos leitores.
Com todo respeito aos nossos ídolos da MPB, não resisto à tentação de mostrar uma paródia da música “Cálice”, composição de Gil e Chico em ataque direto à censura dos militares. Quem se der ao trabalho de ler a letra, deve ouvir a melodia na rádio-cabeça para entender o absurdo da situação atual:
Biógrafo
Pai, afasta de mim o biógrafo / Pai, afasta de mim o biógrafo / Pai, afasta de mim o biógrafo / Que quer sugar o meu sangue
Como reler a minha própria história
Lembrar de cor toda a minha labuta
Mesmo famosa a vida me pertence
Silêncio eu quero sobre a face oculta
De que me vale ser um cara pop
Melhor seria ser desconhecido
Não ter no pé repórter enxerido
Nem me esconder feito cantor de rock
Pai, afasta de mim o biógrafo…
Se a biografia é um livro de luxo
De capa dura, à noite eu escrevo
Um novo samba no qual me atrevo
A criticar todo esse nosso lixo
Essa polêmica me atordoa
Um imortal também guarda segredo
Biografia sempre me dá medo
Não vou ceder, não tem meu pé me doa
Pai, afasta de mim o biógrafo…
De muito velha a musa já não canta
De muito doida já não mais inspira
Como é difícil, pai, ser caipira
Se o breganejo todo me suplanta
A biografia errática do cara
Não sai barata e é má reportagem
Deixo por menos obra que é tão rara
Quero vetar toda essa sacanagem
Pai, afasta de mim o biógrafo…
Talvez no fundo eu seja vaidoso
Por inventar o meu próprio desejo
Quero cortar com a faca esse meu queijo
E proibir biógrafo teimoso
Quero exercer minha própria censura
Pra minha imagem não ter prejuízo
Os meus demônios eu mesmo exorcizo
O criador não quer ser criatura
******
Jorge Fernando dos Santos é jornalista e escritor