Por muito tempo, a biografia foi considerada um gênero menor entre os historiadores, de grande apelo popular, mas desacreditado pela academia ao longo do século XIX e durante boa parte do século XX. Foi preciso esperar até os anos 1980 para que ela ganhasse um renascimento fulminante, tanto erudito quanto comercial. Em seu livro “O desafio biográfico”, uma espécie de biografia da biografia, lançado no Brasil pela Edusp, em 2009, o historiador e epistemólogo francês François Dosse mostra como o relato sobre a vida de artistas, políticos e pensadores deixou de ser o patinho feio das universidades e editoras para se tornar um imprescindível vetor de difusão de memória e conhecimento em seu país. Para o historiador, trata-se de um agente capaz de redimensionar o legado de uma figura histórica, esteja ela viva ou morta.
Dosse sabe do que está falando: além de ser um dos principais teóricos do gênero, ele próprio já se lançou na dura tarefa de remontar a vida de pensadores influentes, mas pouco conhecidos do grande público, como o historiador Pierre Nora e o filósofo Paul Ricoeur. Em sua famosa “Biografia cruzada” (Artmed), sobre a parceria entre o filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Felix Guattari, Dosse ajudou inclusive a reabilitar o lugar de Guattari entre os pesquisadores, que até então haviam se concentrado muito mais no brilho ofuscante de Deleuze.
Portanto, não surpreende que Dosse reaja com perplexidade ao ser informado sobre os detalhes do sistema de censura prévia imposto aos biógrafos brasileiros, e que há anos vem inibindo a produção do gênero no país. Por telefone, de Paris, algumas horas antes de embarcar para o México para uma série de palestras, não consegue conter o riso ao descobrir a tão debatida polêmica em torno do Procure Saber, o movimento organizado por artistas contra as biografias não autorizadas.
– Mas isso tudo é muito doido! – exclama, entre gargalhadas. Incrédulo, o historiador precisa de alguns segundos para se recompor. – Fico surpreso em relação à democracia brasileira e ao direito de expressão no país. Para um historiador e um biógrafo, fica impossível trabalhar com textos autorizados ou supervisionados, ou que dependam dos sentimentos dos biografados. É colocar uma mordaça no pesquisador.
A experiência prática e teórica de Dosse é um contraponto perfeito à atual condição dos biógrafos no Brasil. De pronto, ele oferece o exemplo de sua biografia mais recente, que esmiúça a carreira do poderoso Pierre Nora. A peculiaridade é que o biografado reina há mais de meio século no cenário intelectual francês, só que sempre atuando nos bastidores. Espécie de “demiurgo tentacular e invisível” ou “rei sem diversão”, como já foi definido, criou e dirigiu as maiores coleções dedicadas às ciências sociais da Gallimard. Praticamente ditou, na surdina, os rumos da pesquisa em seu país.
Um insulto
Levando em conta a natureza discreta de Nora, contrastada com a importância de suas ações, a tarefa do biógrafo não podia ser mais delicada. Durante a pesquisa, porém, o biografado fez o possível para facilitar o processo: abriu todos os seus arquivos na Gallimard, dando liberdade absoluta a Dosse.
– Nora tinha muitas razões para se preocupar, pois nestes arquivos havia nomes de pessoas ainda vivas, muitas delas relacionadas a ele. Mesmo assim, nunca me impôs nenhuma restrição – lembra Dosse. – Diante da sua generosidade, eu até lhe propus que revisasse as partes mais delicadas. Mas ele se recusou, com uma magnífica grandeza intelectual. Em nome da minha liberdade de escrita, quis ler o material apenas depois de publicado (o livro acabou sendo lançado na França em 2011, com o título de “Pierre Nora. Homo Historicus”).
Outro exemplo digno de nota é sua experiência com a viúva do polêmico filósofo Cornelius Castoriadis, morto em 1997, personagem da próxima biografia de Dosse. Ela não apenas deixou que o biógrafo pesquisasse os arquivos em sua casa sem nenhuma supervisão, como ainda lhe deu a chave para que o fizesse enquanto viajava de férias. Até agora, não pediu para ler uma linha sequer do que está escrevendo.
– É o simples respeito pela liberdade de pesquisa, não há como questionar isso – crava Dosse. – Vale ressaltar que uma biografia não é apenas uma encenação da vida do biografado, é também uma encenação da relação entre o biógrafo e o biografado. E, para que ela possa acontecer, é preciso que haja esta liberdade. Além do mais, a biografia não é puramente factual. É um gênero impuro, que tem sua parte de criatividade, de fantasia, ou seja: de criação literária.
Para não ultrapassar a fronteira tênue entre liberdade de escrita e difamação, Dosse troca a censura prévia pelo que ele chama de “deontologia do biógrafo”. O que significa ter consciência do que deve ou não ser publicado, e em que contexto. Mas cabe, obviamente, ao biógrafo de decidir, e não ao biografado.
Erros sempre acontecem, mas só deveriam ser corrigidos depois da publicação, acredita ele. Ao escrever a biografia cruzada de Deleuze e Guattari, por exemplo, resolveu publicar, baseado na pura fé de diversos testemunhos, a hipótese de que Deleuze escrevera sozinho o último livro da dupla, “O que é a filosofia?”. A coassinatura teria sido um presente ao amigo Guattari, que estava muito doente. O gesto tocou Dosse, mas não agradou as famílias dos dois autores, que logo negaram o fato. Na segunda edição, a informação foi suprimida.
Sobre o discurso de alguns membros do Procure Saber, de que os biógrafos ganham fortunas em cima da privacidade dos outros, Dosse não é doce. Não endossa o argumento.
– Aliás, não é nem um argumento, é um insulto – diz. – Por que as pessoas não podem ser pagas para fazer o seu trabalho? Aliás, são mal pagas, mesmo aqui na França. Eu levo em média três anos para escrever uma biografia, e poderia ganhar muito mais escrevendo um ensaio rápido.
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Bolivar Torres, de O Globo