“Mas isso aqui não me interessa, pelo amor de Deus”, diz a voz idosa, num tom irritado –ouve-se, na sequência, uma batida na mesa. “Ou você faz a minha vida como administrador ou eu não quero o livro.”
A gravação é um registro da tensa negociação entre um biógrafo –o jornalista Ernesto Rodrigues– e seu biografado: João Havelange, o ex-presidente da Fifa.
Ela aparece em um documentário exemplar para a atual discussão sobre biografias: “Conversa com JH”, dirigido pelo próprio Rodrigues, e que será exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
O filme expõe a via crucis por que o jornalista passou a partir do momento em que cumpriu o acordo de apresentar a seu personagem os originais do livro “Jogo Duro – A história de João Havelange”, lançado em 2007.
Sem garantia
Além de tentar derrubar depoimentos de inimigos e qualquer menção a episódios que manchassem sua imagem, Havelange implica até com histórias narradas por amigos, que ajudam a humanizar sua figura.
“Conversa com JH” não apenas narra as desgastantes negociações entre autor e personagem, mas arma, a partir delas, um debate sobre as fronteiras éticas e profissionais da relação entre biógrafos e biografados.
Rodrigues admite ter feito concessões a Havelange antes mesmo que elas fossem requisitadas. “Alguns assuntos que eu sei que são desconfortáveis para o senhor eu coloco na boca dos seus amigos”, diz ele, numa das reuniões.
A precaução é inócua. A certa altura, numa tentativa de encerrar o caso, Havelange sugere: “Faz o seguinte, o senhor guarda tudo isso, no dia em que eu morrer o senhor publica”.
Infelizmente, como deixam claros vários exemplos de livros vetados por herdeiros, nem a morte do personagem é garantia de que o autor poderá lançar sua obra.
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Marco Aurélio Canônico, da Folha de S.Paulo