Essa expressão ardilosa, pink blocs, veio carimbada na primeira página do Estadão de segunda-feira, 14 de outubro: pink blocs na Parada Gay do Rio. Foi esse o título de um pequeno texto-legenda aos pés de uma fotografia tão ousada quanto imensa, bem pouco usual num diário circunspecto como este aqui. Na foto, desfraldada na metade superior da capa do jornal (com o crédito do fotógrafo Marcos de Paula), dois homens se beijam na boca em pleno sol carioca, tendo ao fundo a bandeira do arco-íris, que simboliza os direitos dos homossexuais.
Calma: dizer que os dois manifestantes se beijam na boca no espaço mais nobre deste sóbrio e centenário matutino talvez seja exagero, posto que os lábios de um não tocam os lábios do outro. Eles têm o rosto coberto por uma camiseta providencial. À moda dos black blocs, estão mascarados, apenas com os olhos à mostra – a diferença é que, enquanto os black blocs preferem tecidos negros, aqueles se valem de panos cor-de-rosa –, de tal maneira que, embora seus rostos se colem na posição inconfundível de um beijo, as camisetas cuidam de impedir maiores intimidades bucais. E então, o que queriam os beijoqueiros em rosa? Direitos iguais, quem sabe. Ou um pouco de romance, um instante de divertimento. Acima de tudo, porém, eles procuram atrair o seu olhar, caro leitor. Com todo o respeito, eles se movem atrás do seu olhar.
Agora mudemos de jornal, mas não de dia nem de cidade. Fiquemos na mesma metrópole, na mesma segunda-feira, 14 de outubro de 2013. Só que, agora, em lugar da capa do Estadão, voltemos os nossos olhos para a primeira página da Folha de S.Paulo. Também ali temos uma foto de aglomeração humana, mas não mais em Copacabana, não mais de gays estridentes, mas de romeiros, mais silentes, na cidade de Belém. São homens, jovens em sua maior parte, com o semblante carregado, em sinal de fé, de devoção, de respeito – e também de desconforto. Nas ruas e calçadas da capital do Pará, sob o sol equatorial e sob a sombra das mangueiras que despacham mangas mortíferas contra a cabeça dos passantes, erguem os braços para tocar a corda sagrada do Círio de Nazaré.
Procissões e romarias
E, nesse caso, o que buscam os fiéis? A compaixão de Deus, quem sabe. O perdão por pecados indizíveis. A paga de uma promessa por uma graça alcançada. Acima disso, porém, tropeçando nas imperfeições acidentadas do logradouro público, a céu aberto, diante das câmeras de repórteres dos mais longínquos países, eles suplicam pelo olhar do próximo e do distante, querem um pouco do olhar de cada um de nós.
Não, não diga que a analogia é profana, ultrajante e descabida. Numa era como a nossa, em que a imagem impera como o critério definitivo, em que a uma fotografia se atribui o poder de separar o que é verdade do que é mentira, em que a palavra imagem vira sinônimo da palavra reputação (quando se diz que um político ou uma empresa desfrutam uma boa imagem, o que se quer dizer é que esse político ou essa empresa têm uma boa reputação), todos os atos convergem para as câmeras.
Não adianta você argumentar que o Círio de Nazaré vem de uma tradição muito anterior à TV Tupi. As religiões, também elas, com exceções raríssimas, terminaram por se render à linguagem visual, à tirania dos enquadramentos impactantes, comoventes e cafonas. Assim é que as procissões e as romarias, bem como os jogos de futebol, as reuniões do Supremo Tribunal Federal, as revelações científicas, a guerra e o ambientalismo adotam coreografias as mais mirabolantes, com cenografias teatrais, tiradas circenses, efeitos especiais estonteantes e cada vez mais hiperbólicos.
Cada imagem é um manifesto
Sim, a analogia procede. Os gays mais militantes e os cristãos mais recolhidos, de todas as cores, de todos os credos, querem apenas ser olhados no espetáculo do mundo. Existir virou sinônimo de ser visível.
Dentro desse cenário (um cenário, de fato), se uma categoria profissional não consegue chamar a atenção dos holofotes, poderá estar fadada à insignificância irreversível. O mesmo vale para um time de vôlei feminino, um laboratório farmacêutico, um povo indígena de Roraima, os astronautas chineses, as comunidades quilombolas, os parlamentares de partidos pequenos, os de partidos grandes, os escritores brasileiros que vão a Frankfurt, os escritores brasileiros que não vão a Frankfurt, os cantores que são contra as biografias não autorizadas e os vendedores de cachorro-quente na novela e na vida real. É para ser olhados que adolescentes fuzilam seus colegas de classe na escola. É para ser olhado que um ator proclama que é bissexual. É para ser olhado que o pastor jura fazer milagres. Quanto mais olhar o sujeito retém, mais valor ele terá.
Em meio a tanta encenação, o olhar da gente é assaltado a toda hora. Um protesto aqui, uma missa acolá, uma briga mais adiante, um strip-tease na outra esquina imploram por olhar, mais ou menos como os torcedores que vão aos estádios – que hoje são estúdios de gravação de programas publicitários tendo uma partida de futebol como pano de fundo – com aqueles cartazes onde se lê: “Filma eu, Galvão”. Se os governantes se expressam por meio das técnicas de propaganda, é também como propaganda que os governados querem gritar suas vontades, suas identidades e suas insatisfações. É fazendo cena que eles gritam, e gritam bem alto, em imagens ensurdecedoras. O trio elétrico baiano, o carnaval de Olinda, a Marcha para Jesus e as manifestações de junho são enunciados visuais perfeitamente equivalentes, ainda que pareçam ter motivações distintas.
O seu olhar vale mais do que você pensa. Na realidade performática que nos rodeia, em que cada imagem é um manifesto, o seu olhar é a sua opinião. E aí? O que você vai apoiar com os seus olhos? O Círio de Nazaré ou a Parada Gay? Ou os dois?
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM