Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Na hora errada, no lugar errado

A morte do jovem de Minas Gerais foi capa de todos os principais jornais e tema do fim de semana nas rádios e TVs do Reino Unido, como era de se esperar. Todos lamentaram os fatos e a imprensa parecia questionar a política de ‘atirar para matar’

‘Um morto, faltam três’. Este foi o título de um dos tablóides ingleses um dia após o assassinato de Jean Menezes pela Scotland Yard. Antes de se saber que o homem executado era inocente, testemunhas que presenciaram os fatos afirmavam categoricamente que o até então suposto terrorista fora executado praticamente à queima-roupa com cinco tiros na nuca.

Mesmo com os claros e evidentes testemunhos deste ato no mínimo inusitado num país onde somente cerca de 10% dos policiais andam armados, país que proclama defender os direitos humanos, paradoxalmente usando para isso até mesmo a força militar, a mídia local praticamente não aventou a possibilidade de que poderia se tratar de um inocente. Todos seguiram sem questionar a linha de que um terrorista fora executado. Ainda mais após a polícia afirmar que o homem morto num trem do metrô londrino estava relacionado diretamente aos atentados frustrados do dia anterior. Seguiram a linha mais fácil, que estava à mão, que era mais evidente – ao menos um terrorista estava morto, como se fosse possível construir o final feliz que todos desejam em um país que esconde seu pânico numa aparência de extrema normalidade.

Ação justificada

A informação de que se tratava de um inocente somente foi liberada pela polícia posteriormente. Caiu como uma bomba e deixou o clima social extremamente tenso. Inconformados, líderes da comunidade muçulmana já apareciam na TV questionando o ‘atirar para matar’ da polícia inglesa. Era tido como certo que o inocente morto era muçulmano e que fora morto somente por isso. Já surgiam comentários na mídia pedindo para que os ânimos se acalmassem, que as relações entre as minorias e a sociedade inglesa não fossem afetadas por este evento, num país em que as comunidades de estrangeiros vivem quase em guetos. O temor era claro: o assassinato de um jovem muçulmano poderia levar a violentos protestos nas ruas das cidades da Inglaterra.

No sábado à noite, os canais de TV de notícias 24 horas do Reino Unido começaram a divulgar que o inocente que perdera a vida não era muçulmano. Pouco depois soube-se que era um rapaz latino-americano que vivia legalmente no país, um trabalhador, sem qualquer vínculo com atividades terroristas. Em seguida, foi confirmado que se tratava de um brasileiro de aparência latina. Embora a notícia da nacionalidade tenha sido apurada por The Observer, a Sky News, um dos principais canais de notícias do país, somente divulgou a informação quando correspondentes brasileiros começaram a chegar à Scotland Yard para pedir informações.

Implicitamente, porém, a mídia parecia justificar a ação. Isso estava patente na maioria dos tablóides. Na Sky News, várias vezes os apresentadores fizeram a pergunta ‘Por que ele correu da polícia?’. Os representantes das comunidades árabes sumiram da TV. Poucos indagaram por que os policiais estavam à paisana, por que não pararam o jovem, se o estavam seguindo desde a saída de sua casa; não perguntaram qual a informação levantada pelo serviço secreto que levou a este homem, ainda mais levando-se em conta o histórico da inteligência britânica, que conduziu o país à invasão do Iraque. Em vez dessas perguntas aparentemente óbvias, o tempo todo aventava-se o que teria acontecido se ele fosse um homem-bomba e a polícia não o matasse. Trata-se de argumento que cala fundo na alma de um povo sob ataque. Mas prende-se mais a possibilidades do que a fatos, analisa mais especulações do que dados que estavam à frente de todos.

Um certo alívio no ar

Até então Jean não havia sido identificado. Sua avó e seus pais não apareciam chorando, nem seus amigos falavam. Primeiro, surgiu Silio Boccanera em alguns canais de TV, falando um inglês sofisticado, relatando as reações no Brasil. No domingo, a Inglaterra acordou sabendo nome, sobrenome e aparência da vítima, além dos profundos lamentos pela fatalidade. A esta altura, as vozes críticas da ação da polícia limitavam-se praticamente ao primo de Jean, que falara a alguns veículos da imprensa inglesa. Quando a avó da vítima apareceu na mídia, já era claro o consenso de que acontecera uma fatalidade e que a política de ‘atirar para matar’ era totalmente justificável num momento da guerra em defesa do modo de vida ocidental.

As imagens da família de Jean no Brasil relevam a origem simples do desafortunado brasileiro, mostrado como um coitado da pobre América Latina tinha sido morto por engano. As imagens mostraram o rapaz não era europeu ou muçulmano. De ocidental questionando as ações da polícia inglesa, somente o ministro Celso Amorin, que saiu de um belo carro de luxo em seu bem cortado terno escuro.

‘Na hora errada, no lugar errado’ foi a manchete do Independent de segunda-feira, quando parecia haver já um certo alívio no ar: o inocente era mesmo um coitado brasileiro, não muçulmano, e a polícia continuaria com licença para matar.

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Pesquisador e doutorando da Manchester Business School, Inglaterra, sobre a indústria de jornais no Reino Unido, professor da EAESP-FGV