Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O silêncio dos ‘inocentes’

Hoje, ninguém sabe, talvez nem queira saber, e a chamada “grande imprensa” não tem o menor interesse em informar sobre dois dados da Lei 10406/02, em cujo artigo 20 há a “censura às biografias”: quem foi o autor dessa lei? E quem sancionou? Essas duas informações são importantes? São dados relevantes? São noticiáveis? O cidadão/eleitor precisa saber? Se sim, por que nenhum órgão de imprensa os informa? Por que há um silêncio total sobre esses dois dados, essas duas informações?

A “opinião pública”, como que dependente daquilo que sai na Folha, no Globo, no Estadão, na Época, na Veja, no UOL, iG, Terra, Agência Estado etc., não é informada sobre esses aspectos relevantes, pois nenhum desses veículos se dignou a cumprir seu papel. O próprio “direito à informação”, tão usado na retórica, neste caso específico (e em outros) é deixado de lado, por conveniência ou por interesses escusos, talvez.

Ora, se tais informações relevantes não são publicadas na imprensa, logo não serão republicadas, retuitadas, postadas, compartilhadas, multiplicadas pelas atuais legiões de indignados, sempre a postos para multiplicar notícias (falsas ou verdadeiras) que saem na “grande imprensa”.

República de bananas

Não, o autor dessa lei não foi nenhum deputado do PT – esse que não é mais um partido, e sim, um diabo, um demônio. Não foi nenhum senador do PT. Não foi nenhum jurista filiado ao simpatizante do PT. Não foi o(a) presidente petista.

Mas, caso o autor fosse alguém do PT, já teríamos lido:

Na Folha: “Petista foi autor de censura a biografias”.

Em O Globo: “Censura a biografias foi sancionada por Lula”.

Estadão: “Código foi conduzido por petista”.

Revista Época: “Petista coordenou o Código Civil”.

IstoÉ: “Após chegar ao poder, PT veta biografias”.

UOL: “Jurista ligado ao PT censura biografias”.

A revista Veja talvez estampasse: “É PermiTido probir?”, com as letras P e T em vermelho, em montagem com foto de Caetano Veloso, junto com Chico Buarque. No site da Veja, Reinaldo Azevedo e Augusto Nunes já teriam deitado o sarrafo na “raça petista”.

No jornal O Globo, o cronista João Ubaldo já teria feito dois textos batendo na mesma tecla. A coluna de Merval Pereira, por sete dias consecutivos, atiraria todas as suas pedras na Geni, aproveitando para falar a mesma coisa no canal GloboNews.

Na Globo, Arnaldo Jabor iria falar em censura, república de bananas, falaria genericamente dos “canalhas”, dos “censores que querem ser os donos da história”, “essa gente que já aparelhou o Estado e agora quer aparelhar a história”.

Um potencial biografado

Choveriam editoriais nas páginas da Folha, do Estadão, do Globo.

Os colunistas (de novo o Jabor, e Kramer, Gaudêncio, Di Franco, Cantanhêde, Ruy Castro, Danuza, Pondé, Ricupero, Gullar e também Aécio Neves e Marina Silva), todos de armas na mão, formariam um bombardeio à “censura petista”.

O fato de “ter o dedo do PT” seria amplificado até a décima potência, as redes sociais espalhariam nome e foto do satanás petista, certamente um demônio em pessoa, um verme que deveria ser expurgado da política e mandado para a cadeia, sem defesa e sem embargos infringentes.

Mas…

Infelizmente (para eles), essa censura não pode ser atribuída ao PT nem mesmo a um simples simpatizante do PT. Não foi nenhum churrasqueiro ligado ao PT, não foi nenhum oficial de cartório do ABC (região onde nasceu o PT), não foi nenhum motorista que trabalhou para o PT. Infelizmente (para eles), não foi.

E enquanto a velha imprensa (essa imprensa branca e de direita, no dizer de Joaquim Barbosa) se cala sobre a autoria e sobre quem sancionou a lei, um outro silêncio chama a atenção: é o silêncio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, este comentarista com generosos espaços na mídia que se tornou fonte de assuntos que vão de corrupção a maconha.

Embora hoje seja comentarista de quase tudo, e seja ouvido para qualquer pauta, FHC não dedicou sequer uma palavra nas suas falas e nenhuma linha em seus artigos semanais para essa palpitante polêmica sobre biografias – e a imprensa amiga também não o quis (desta vez) como fonte; logo ele que, além de opinar sobre tudo, é um potencial biografado.

Silêncio retumbante

Além de ter diversas oportunidades de dizer ou escrever algo sobre a polêmica e não dizer, “o príncipe dos sociólogos” também teve outra chance de ouro de se manifestar sobre o tema, além de se juntar aos seus pares “imortais” da Academia Brasileira de Letras: bastaria assinar o manifesto que praticamente todos os acadêmicos da ABL assinaram, em texto publicado nos jornais em 24 de setembro. No manifesto, chama a atenção uma frase já no final: “Está mais do que na hora de eliminar esse entulho autoritário”. Essas duas últimas palavras – “entulho autoritário” – formam a famosa expressão cunhada pelo ex-presidente.

Muito embora FHC tenha pedido para esquecerem o que ele escreveu, vê-se que a ABL não levou o pedido a sério, tanto é que o elegeu como acadêmico e, no supracitado manifesto, usou a referida expressão – não se sabendo o motivo de o ex-presidente não ter assinado tão importante documento. O fato é que FHC não falou nada sobre o tema, nem escreveu nada em seus artigos, nem assinou o manifesto dos colegas da ABL por uma simples razão: foi ele, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, que, em 10 de janeiro de 2002, sancionou essa lei que contém a “mordaça biográfica” ou o “entulho autoritário”.

A lei 10406/02, que criou o Código Civil, foi coordenada pelo jurista tucano Miguel Reale, amicíssimo de FHC, que o sancionou, quando poderia ter vetado os dois artigos da censura, se quisesse vetar. Portanto, há que se dizer: esse “entulho autoritário” (nas palavras dos imortais da ABL) foi assinado pelo então ministro da Justiça Aloysio Nunes Ferreira, hoje senador pelo PSDB-SP, e pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, também do PSDB.

Apesar do silêncio retumbante em toda a mídia, o único jornalista a lembrar disso foi Paulo Moreira Leite, da IstoÉ, que em sua coluna no blog da revista escreveu o seguinte:

“A responsabilidade é dos deputados e senadores do PSDB e do então PFL, que davam maioria a Fernando Henrique Cardoso no Congresso, em 2002. FHC, que sancionou o Código, teve seu papel. Poderia ter vetado os dois artigos, direito reservado a todo presidente da República. Não o fez.”

Para derrubar a proibição

O jornalista da IstoÉ também publicou a “explicação” do hoje senador tucano Aloysio: “Ninguém falou sobre isso na época.” Não deixa de ser simbólica, bastante reveladora essa frase do grão-tucano: “Ninguém falou sobre isso na época.” Pois é, ninguém falou porque não interessava falar, mas a “censura” estava lá para quem quisesse falar sobre ela. É inevitável, quase que automática, uma pergunta: e se isso fosse hoje, alguém falaria? Ou ninguém falaria? E se fosse Dilma que sancionasse? E se fosse Lula que sancionasse? E se essa lei fosse obra de um jurista ligado ao PT? Ninguém falaria nada?

Curioso também é que, se quisesse, o ex-ministro e hoje condenado José Dirceu poderia usar essa lei para proibir a sua biografia. Em entrevista ao Globo, em 15/10/2013, eledisse que não criou nenhum obstáculo e que não acionaria a Justiça.Dirceu, a biografia, a obra mais recente do gênero, de autoria de Otávio Cabral, que é editor da revista Veja, vendeu mais de 30 mil exemplares nas primeiras semanas e chegou às listas de mais vendidos de não-ficção. Seria uma ironia isso: José Dirceu recorrer a uma lei tucana, elaborada por tucano, sancionada por tucano, para proibir a obra e pedir indenização. Foi isso que fez o cantor Roberto Carlos, que ganhou na Justiça, tanto a proibição como a indenização.

Nos próximos dias 20 e 21 de novembro o STF realizará audiência pública sobre o assunto, antes de decidir sobre a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) impetrada pela Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), que pretende derrubar a proibição criada na gestão tucana. Além disso, dois projetos de lei no Congresso, um do ex-deputado Antônio Palocci (PT-SP) e outro do deputado Newton Lima (PT-SP) pretendem derrubar essa “proibição”. Mas isso – ou pelo menos a informação da autoria – também não interessa à imprensa.

O que é bom e o que é ruim

E por que não interessa?

Pelo jeito, se fosse Lula ou Dilma que tivesse sancionado esses artigos de “censura” e “mordaça”, até a Velhinha de Taubaté já teria ressuscitado e postado nas redes sociais um “Fora PT”.

Esse silêncio dos “inocentes” faz lembrar uma velha máxima de um ideólogo, conselheiro e ex-ministro de FHC. Foi Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda, que sentenciou via parabólica (sem saber que estava sendo gravado): “Eu não tenho escrúpulos: o que é bom a gente mostra; o que é ruim a gente esconde”.

A pequena “grande imprensa” sabe muito bem o que é bom e o que é ruim – para ela.

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Marcelo Torres é jornalista