Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fica dramática a situação do Brasil!

E, como diria Galvão Bueno, aos quarenta e dois minutos do segundo tempo de um daqueles jogos em que nada dá certo, “fica dramática a situação do Brasil !”.

“Por quê?” – dirá o leitor imaginário, já assustado com a súbita referência a um narrador esportivo num debate tão pouco esportivo quanto este sobre a publicação de biografias.

Responderei, para esclarecer logo o mal entendido: “Fica dramática a situação do Brasil!”, sim, porque a lei esdrúxula que submete a publicação de biografias à aprovação dos biografados ou seus herdeiros já produz efeitos colaterais graves.

Ninguém me contou, eu vi: editoras estão com medo de publicar não apenas biografias, mas simples reportagens em livro, por temor da lei da mordaça biográfica. Qual será o próximo passo?

Quem sai perdendo, no fim das contas, é aquela velha senhora tão querida e tão mal compreendida – Dona Democracia da Silva Xavier.

Palco fascinante

Não é exagero dizer: o artigo do Código Civil que torna possível o veto a biografias é um estupendo desserviço ao país. Qual é o autor que vai suar a camisa durante meses e meses, anos e anos, para, no fim das contas, ter o trabalho condenado a mofar no fundo de uma gaveta? Basta que o biografado – ou seus herdeiros – implique com um parágrafo, um detalhe, uma frase. Pronto! Acabou. Já era. Basta para que o livro vá para a fogueira – simbólica ou literal.

Resultado: dezenas de livros estão deixando de ser publicados. Não é exagero. Instala-se o silêncio, no lugar da palavra. E, seja qualquer for o argumento que se use para justificá-lo, silêncio nunca foi bom para o Jornalismo ou a História de um país. Nunca. Never. A trajetória de figuras públicas – e de anônimas, também – se confunde, sim, com a trajetória do Brasil. Biografias pessoais podem, então, jogar luzes sobre a história. Jogam. Já o silêncio não joga nada sobre nada. Produz treva e vazio. Por que, então, submeter as biografias ao vexame da censura? (Não há outra palavra. O efeito prático da lei é a censura, sim ).

O problema não são os artistas. Os problemas não são os biógrafos. O problema é a lei. Por que não se muda a lei, consensualmente, então? Tudo podia ser tão simples. O fogo cruzado deste debate há de trazer bons resultados – para biógrafos e biografados. O enorme choque de opiniões faz parte das dores do parto. Democracia dá trabalho. Mas um rebento pode estar a caminho.

Ah, antes que alguém atire a primeira pedra: nem preciso lembrar que a privacidade é direito irrevogável de todo brasileiro, vivo ou morto. Mas é absurdo imaginar que toda biografia seja invasão de privacidade. Não é. Neste debate, a figura dos biógrafos foi “demonizada”. Correm o risco de serem vistos como abutres famintos que investem sobre a vida alheia em busca do vil metal. Falso, falso, falso.

Grandes nomes da música brasileira foram igualmente “crucificados” porque, para surpresa geral, se declararam a favor da autorização prévia. Há uma grande novidade, desta vez: Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, ícones de uma geração, parecem estar do lado errado. Estão.

Tensão entre jornalistas e artistas é saudável. Eu diria: saudabilíssima. Jornalista não deve pensar como artista – felizmente. E artista não deve pensar como jornalista – ainda bem! Quando pensa como artista, o jornalista trai o jornalismo. E o artista trairá a arte se pensar como jornalista.

Neste exato momento, alguém levanta a mão na plateia imaginária para dizer que estou brandindo argumentos a favor da liberação incondicional das biografias porque sou jornalista. Não e não. Arrisco-me, até, a fazer uma declaração que, no fim das contas, depõe contra o Jornalismo: em figuras como Gilberto Gil, em Caetano Veloso, em Chico Buarque, o importante é a música que eles produziram ou produzem. Certamente, fizeram o país “andar para a frente” e dar um passo para se livrar dos atoleiros mentais do subdesenvolvimento. São “gigantes” – pelo que criaram. O importante, repito, é o que produziram: não é o que eles disseram eventualmente a um jornalista. Ou o que um jornalista – biógrafo ou não – possa escrever sobre eles. De qualquer maneira, é claro que eventuais biografias de figuras públicas como eles podem ajudar a iluminar este palco fascinante e sofrido por onde se move o Brasil. O que se quer, em uma palavra, é luz. Lastimavelmente, luz não rima com “autorização” para o exercício do jornalismo (biografia é um produto jornalístico).

Pedra no caminho

Sou razoavelmente insuspeito para falar. Faço jornalismo há quatro décadas (uma língua maldosa perguntaria: não seria hora de procurar um estábulo confortável para repousar os ossos cansados? ). Não tenho, no entanto, contemplação com o jornalismo. Falo aqui, em nome “estritamente pessoal”. Jornalistas cometem uma vasta coleção de pecados. Jogam, despudoradamente, notícia no lixo. Julgam-se, na maioria, muitíssimo mais importantes do que realmente são. Pecam pela pretensão delirante ou pela vaidade descabida. Mas, independentemente desse rol de pecados, a maioria esmagadora toma cuidado com o que faz.

Já deixei de publicar trechos de uma entrevista de Roberto Carlos porque ele pediu. Minha pergunta tocava num tema pessoal: um trauma sofrido por ele na infância. Em respeito à privacidade do entrevistado, o trecho ficou de fora. Engoli o sapo. Ainda assim, entrei na “lista negra” do Rei. Uma produtora me disse que Roberto Carlos não me daria outra entrevista. Acontece. Já ouvi indiscrição de Caetano Veloso. Não publiquei porque a indiscrição foi dita fora da entrevista. Poderia ter publicado. Resisti à tentação. Engoli o “auto-sapo”. Chico Buarque não gostou nem um pouco de ver uma chamada do “Fantástico” trombeteando uma declaração inofensiva que ele me dera numa entrevista: confirmou que tem um meio-irmão alemão – a quem nunca encontrou. Bem humorado, disse: “Meu pai teve um filho alemão antes de se casar. Depois, perdeu-o de vista, porque voltou ao Brasil, onde se casou. Uma vez, quando eu estava em Berlim, tive a impressão de estar vendo um irmão em alguma parte – alguém que parecesse comigo ou com ou com o meu pai. O engraçado é que sempre perguntavam ao meu pai – que era muito branco de pele: “Por acaso o senhor é filho de alemão?. E ele dizia: “Não. Sou pai de um…”

Quando me preparava para a entrevista, vi esta história sobre o meio-irmão num perfil de Chico Buarque publicado num número antigo da revista “Realidade”. Perguntei. Chico Buarque respondeu – mas quando, dias depois, viu a chamada do programa com a voz de trovão de Cid Moreira, quase caiu para trás. Se ele tivesse pedido para que este trecho – inofensivo – não fosse incluído, eu teria tirado. A entrevista foi ao ar. Chico cortou relações – já quase inexistentes – com o “Fantástico”, programa em que eu trabalhava, na época. Reclamou de sensacionalismo. Engoli o sapo. Acontece. Com ou sem entrevista, o importante não é o que ele disse ou deixou de dizer. É o que ele compôs. Por fim: jornalistas (por extensão, biógrafos) respeitam a privacidade, sim.

Feitas estas ressalvas e cometidas estas pequenas confissões sobre cenas de bastidores do jornalismo, pergunta-se: os artistas que defendem a autorização para publicação de entrevistas estão equivocados? Estão equivocadíssimos. Agarraram-se a um monstrengo que abre o caminho para o silêncio e a proibição.

O terrível, o dramático, o trágico – para o Brasil, para o jornalismo e para a história – é que, na prática, a exigência de autorização prévia para publicação de biografias, defendida por tantos artistas, pode servir para proteger ditadores, políticos corruptos, torturadores etc., etc. Eis um efeito colateral danoso.

O STF pode declarar inconstitucional o tal artigo que sujeita as biografias à autorização de biografados e herdeiros. Tomara que declare. O Congresso pode derrubá-lo. Tomara que derrube.

Tudo deveria ser tão simples. Primeiro: que se liberem as biografias. Segundo: que se respeite incondicionalmente a privacidade, a imagem, a honra, seja o que for. Quem cometer abuso que responda diante da lei. É assim em todas as democracias. Por que diabos teria de ser diferente aqui?

Do jeito que foi concebida, a lei é uma imensa pedra no meio do caminho do Brasil. Não é exagero: uma imensa pedra no meio do caminho. Poeta Drummond, acorde! Venha tirar esta pedra. Venha repetir aqueles belos versos:

“À sombra do mundo errado, murmuraste um protesto tímido…”

É o que resta fazer.

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Geneton Moraes Neto é jornalista e autor de Dossiê Drummond e Dossiê Brasília: Os Segredos dos Presidentes , entre outros títulos. Trabalha na Globonews