Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

NSA, Rupert Murdoch e as lições sobre espionagem

O Grande Irmão nunca se divertiu tanto. Por quê? A resposta está numa palavra: tecnologia. A quantidade de informações particulares que compartilhamos usando os smartphones e a facilidade com que as agências do governo e interesses privados podem acessar esses dados fazem a Stasi parecer uma relíquia medieval.

O bem essencial que está sob ameaça também pode ser descrito numa palavra: privacidade. “A privacidade está morta. É melhor se acostumarem com isso”, teria comentado um executivo importante do Vale do Silício. Alguns não aceitam isso. Ainda queremos vestir algumas roupas. Acreditamos que a preservação da privacidade individual é essencial não apenas para a dignidade humana, mas também para duas outras coisas que valorizamos: liberdade e segurança.

A dificuldade está no fato de a privacidade ser essencial para a liberdade e segurança e, ao mesmo tempo, estar em tensão com as duas. Um ministro do gabinete que recebe a amante com lençóis de cetim às custas do contribuinte francês não pode apresentar objeções justificáveis quando a imprensa denuncia suas extravagâncias.

A liberdade do cidadão de investigar a conduta de figuras públicas sobrepuja o direito do ministro à privacidade. A pergunta é: como definir aquilo que é do interesse público e distingui-lo do que é simplesmente “interessante para o público”?

Da mesma maneira, se quisermos ser protegidos de bombas terroristas no nosso trajeto diário até o trabalho, algumas pessoas consideradas perigosas terão seus telefones grampeados e seus e-mails lidos. A questão é: quem serão os alvos, quantos eles serão e como controlá-los? A essência das reportagens publicadas no Guardian, no New York Times e em outros jornais envolvendo as informações vazadas por Edward Snowden revelou que esses pesos e contrapesos não estavam funcionando a contento nos EUA e na Grã-Bretanha.

Figuras públicas

A NSA e o GCHQ (agência de inteligência da Grã-Bretanha) estavam reunindo dados demais a respeito de um número grande demais de indivíduos em países demais, usando a margem criada por leis antiquadas, desproporcionalmente abrangentes e contando com a supervisão deficiente por parte do Congresso. O fato de o governo de Barack Obama e o Parlamento americano terem agora a intenção de endurecer as regras para a espionagem – algo que a Grã-Bretanha também parece prestes a anunciar – demonstra que havia algo errado antes. Será que eles estariam agindo se não fosse a atuação de um dedo-duro e da imprensa livre? A pergunta responde a si mesma.

Recentemente, o debate escapou pela tangente que explora as implicações da espionagem mútua entre países supostamente aliados. Trata-se de outra questão. Se eu fosse o governo do país X, é claro que desejaria que meus próprios segredos estivessem em segurança enquanto acesso, incógnito, os segredos de todos os demais governos.

Na prática, todos tentam fazê-lo. Há um raciocínio – defendido por espiões de ambos os lados da Guerra Fria – segundo o qual se os ministérios da Defesa de todo o mundo espionassem as cuecas blindadas uns dos outros, o planeta seria um lugar mais seguro. Adaptando o vocabulário de George W. Bush, seria menor o risco de “superestimação equivocada mútua”.

Mas não deveria ser esse o tema central do debate. O tema vital em jogo é a privacidade individual dos cidadãos inocentes. Uma imprensa livre desferiu um golpe para defender nossa privacidade quando os controles legais e parlamentares fracassaram. Infelizmente, os espiões não são os únicos a usar as possibilidades da tecnologia contemporânea de comunicações – que surpreenderiam até a George Orwell – para violar a privacidade dos indivíduos sem justificativa.

A revista satírica britânica Private Eye captura isso de maneira brilhante. Com a manchete “Merkel furiosa com grampo de Obama”, a publicação traz uma foto da chanceler alemã segurando o celular, irritada. Um balão de diálogo sobreposto à foto diz: “Quem você pensa que é? Rupert Murdoch?”

Mesmo enquanto o primeiro-ministro britânico, David Cameron, e os colunistas dos jornais de Murdoch, na Grã-Bretanha, denunciam o jornal britânico The Guardian por colocar em risco a segurança nacional, Rebekah Brooks, ex-editora do já extinto tabloide News of the World, de Murdoch, e colega de “jantares” de Cameron, vai a julgamento. As acusações decorrem da quebra do sigilo telefônico de indivíduos realizada por jornalistas a serviço dela. Essa quebra de sigilo não foi feita em nome da segurança nacional, mas sim da excitação nacional – portanto, com o ganho comercial como objetivo.

Assim, se a imprensa livre é necessária para manter sob controle os excessos do Estado na vigilância secreta, a maior parte do público britânico também quer ver limites para os excessos da vigilância secreta realizada pela imprensa livre. O público, porém, não quer que tais poderes sejam colocados nas mãos de políticos – e há bons motivos para isso, como a recente tentativa do presidente do Partido Conservador, Grant Schapps, de colocar a BBC na linha a tempo de aproveitá-la para as eleições gerais de 2014.

Na mesma semana – com todas essas notícias relacionadas chegando ao mesmo tempo, feito ônibus londrinos –, vemos uma tentativa desajeitada e antiquada de ligar o sistema reforçado de autorregulação da imprensa britânica a uma Carta Real a ser aprovada pelo Conselho Privado (ou seja, um bando de políticos importantes).

Na verdade, a própria ideia de regulamentar algo chamado “imprensa” dentro de uma estrutura puramente nacional está se tornando rapidamente um anacronismo. Onde termina a “imprensa” e onde começa a expressão individual no Twitter ou no Facebook? Acho graça ao ler que os advogados de Rebekah pediram a vários indivíduos de destaque que denunciem mensagens publicadas no Twitter a respeito dela.

A ex-editora é uma destemida campeã da liberdade de expressão envolvendo figuras públicas – exceto em se tratando de si mesma. Enquanto isso, o juiz do caso alertou solenemente aos jurados para que tirem os olhos do Facebook, do Twitter e, especialmente, da capa da Private Eye, dizendo – naquilo que só pode ser um sutil exemplo de autoironia judicial – se tratar de uma publicação “de péssimo gosto”.

Olhos no alvo

A capa compara Rebekah a uma fantasia de bruxa para o Halloween. Dados, palavras e imagens estão transbordando de todas as plataformas e ultrapassando também os limites das fronteiras nacionais. Assim, a União Europeia tem como objetivo reforçar a proteção à privacidade dos europeus, contra as gigantes americanas, por meio de uma nova diretriz de proteção aos dados.

No entanto, isso traz o risco de fragmentar a internet em diferentes retalhos soberanos, algo que beneficiaria regimes autoritários como China e Rússia. Assim, a privacidade de alguns seria defendida às custas da liberdade de expressão online de todos nós. Qual é a resposta? Não existe solução fácil, mas devemos ao menos manter os olhos no alvo certo, que não é a questão da espionagem mútua entre os Estados. O problema é a profunda erosão da sua privacidade.

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Timothy Garton Ash, especial para Estado de S.Paulo