Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Projeto de lei fere direitos fundamentais

O surgimento da rede mundial de computadores, mais conhecida como Internet, revolucionou a comunicação entre os seres humanos de todo planeta. Hoje, é possível ouvir música islandesa, baixar filmes iranianos e saber o que se passa do outro lado do mundo, lendo diariamente notícias em urdu ou em japonês. Além da ampliação do acesso, com a Internet deixamos de ser apenas receptores dos produtos informacionais e passamos a ser também produtores de notícias, de vídeos e de áudios que alimentam um gigantesco emaranhado de máquinas e pessoas. Surgem a blogosfera e as teias de redes sociais, como Facebook, YouTube e Orkut, que colocam as pessoas em um outro patamar comunicacional e elevam exponencialmente as possibilidades de trocas.


Para compreender o cenário acima descrito, nem mesmo o menos informatizado dos leitores precisa fazer esforço. A internet se disseminou como uma epidemia, invadindo casas e cotidianos de maneira avassaladora, em especial nos últimos 15, 20 anos. E essa ‘invasão’ só foi possível devido à lógica de liberdade e colaboração sob a qual a rede mundial de computadores foi construída. Sem os preceitos básicos de acesso quase infinito ao conteúdo da rede e aos processos de criação coletiva que ela proporciona, sabe-se lá onde teria parado o seu desenvolvimento. Assim, é fácil entender como ela se disseminou tanto, tomando nossas mentes e inundando nosso dia-a-dia, e como evoluiu, sendo moldada pelo esforço humano coletivo.


Práticas contra rede de computadores


Mas, ao mesmo tempo em que a rede amplia nossas possibilidades de comunicação, de produção e acesso à informação, aumenta a comunicação entre pessoas e faz evoluir o conhecimento, ela reflete também as características da sociedade humana, sua progenitora, que está longe de ser perfeita e unicamente positiva. Seu sistema baseado na comunicação distribuída, que permite uma interconectividade relativamente horizontal entre as máquinas, pode facilmente dar lugar a instrumentos de monitoramento e controle bastante refinados.


Desta maneira, o futuro da internet apresenta-se como um importante campo das lutas políticas. Será ele forjado como um recurso de comunicação alternativa e de livre produção de conhecimentos? Ou se transformará em um vasto dispositivo a serviço da vigilância estatal e corporativa?


É dentro deste cenário, ao mesmo tempo complexo e novo, que gera perplexidade, excitação e ansiedade, mas também medo, que se monta o palco de uma disputa travada aqui no Brasil, quase silenciosa, entre as forças conservadoras e aqueles que sabem da importância de manter livre e cada vez mais acessível a informação que circula na rede.


No Brasil, um projeto substitutivo sobre crimes na internet, aprovado e defendido pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), está para ser votado na Câmara de Deputados. Trata-se da aglutinação de três projetos de lei que já tramitavam no Senado (PLS 76/2000, PLS 137/200 e PLC 89/2003). Todos tinham como objetivo tipificar condutas realizadas mediante uso de sistema eletrônico, digital ou similares, de rede de computadores, ou que sejam praticadas contra rede de computadores, dispositivos de comunicação ou sistemas informatizados e similares, além de dar outras providências.


Falta pouco para o Ai-5 digital


Esse substitutivo, caso seja aprovado, tornará crime inúmeras de nossas práticas virtuais cotidianas. Ele atende fundamentalmente a interesses de bancos que têm sofrido prejuízos com fraudes pela internet e a reivindicações da indústria de direito autoral dos Estados Unidos, que exige a criminalização da quebra de travas tecnológicas.


O objetivo velado do substitutivo do senador Azeredo, já conhecido também como o AI-5 digital, é, portanto, tornar suspeitas as redes P2P, impedir a existência de redes abertas e reforçar o DRM (Gerenciador Digital de Direitos, na sigla em inglês), que impedirá o livre uso de aparelhos digitais. Entre as disposições do AI-5 digital, como vem sendo chamado o PL por seus opositores, uma das mais preocupantes é a intenção de transformar os provedores de acesso em uma espécie de polícia privada. Trata-se, portanto, de um projeto que coloca em risco a privacidade dos internautas e que busca restringir o acesso irrestrito a bens informacionais de valor inestimável para o desenvolvimento da cultura. Ele instaura uma atmosfera de vigilantismo que vai contra toda a possibilidade de avanço tecnológico da rede e, se aprovado, elevará e muito o custo de comunicação no Brasil, que já é bastante alto.


Trata-se de uma matéria urgente, pois faltam poucos passos para a votação final que pode tornar lei o projeto considerado por muitos especialistas como inconstitucional, vigilantista e violador da privacidade individual. Já votado em Plenário no Senado, no dia 5 de março, o deputado conservador Regis de Oliveira (PSC-SP), ligado ao PSDB, conseguiu aprovar seu parecer favorável ao projeto do senador Azeredo na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. Agora, ele passa por análise das Comissões de Ciência e Tecnologia daquela casa e então será encaminhado para votação em Plenário. Falta muito pouco para a aprovação do AI-5 digital.


Sanções viram crimes


Assustados com a possibilidade de que a população brasileira tenha suas liberdades podadas, deputados e legisladores contrários ao projeto, especialistas, intelectuais, ativistas, artistas e internautas em geral chamam para um ato público de esclarecimento, pela liberdade da internet e contra o Projeto Azeredo, no dia 14 de maio, na Assembléia Legislativa de São Paulo, às 19h. O objetivo é pressionar pela não aprovação do projeto, ou por uma redação que se limite a legislar claramente sobre crimes na internet, como a pedofilia.


Entenda, passo a passo, ou artigo por artigo, os maiores problemas do AI-5 digital. Assim, se você ainda não entendeu o porquê deste ‘apelido’, vai entender agora.


Para começar a entender o projeto, é importante atentar para o seu art. 16. Nele, estão as definições do que é dispositivo de comunicação, sistema informatizado, rede de computadores, código malicioso, dado informático e dado de tráfego, por exemplo.


Mas a vaguidão dessas definições abre muitas das brechas para que práticas cotidianas comuns dos internautas possam ser julgadas como infrações sancionadas pelo Código Penal.


O Art. 285 é um dos mais perigosos do projeto. No Art. 285-A, há a proposta não só de legitimação do DRM, mecanismo de restrição de cópias em aparelhos e sistemas informatizados, mas também de criminalização de sua inutilização. Se O PL passar, caso você destrave seu aparelho de DVD, comprado fora do Brasil, e que, portanto, não roda vídeos produzidos na região da América Latina, você é um criminoso. Da mesma maneira, se você ‘puxar um gato’ da TV a cabo da sua sala para o seu quarto, você virou bandido. Hoje essas práticas são ilegais e a elas cabem sanções, mas daí a se tornarem crimes, com pena de prisão, já é absurdo.


Em defesa da indústria fono-cinematográfica


A redação do artigo 285-A diz: ‘Acesso não autorizado a rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado; Art. 285-A. Acessar, mediante violação de segurança, rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, protegidos por expressa restrição de acesso.’


Se o objetivo do artigo fosse impedir o crime de invasão na rede, bastaria escrever que seria considerada prática criminosa ‘invadir servidores de rede e computadores sem autorização de seu responsável’. Mas a equipe do senador Azeredo quis deixar a porta aberta para interpretações mais amplas.


Se você baixa música na internet e, nos últimos anos, deliciou-se com o aumento do seu arquivo musical, prepare-se para um retrocesso. Esse artigo o afeta diretamente. As ferramentas P2P (intermediadores para a troca de arquivos) revolucionaram o acesso à cultura e à arte. Ampliaram o acesso de maneira nunca antes imaginada. E é bom também preparar os bolsos para voltar a comprar CDs e, quem sabe, até os antigos vinis. O Art. 285-B criminaliza a transferência ou fornecimento de dados ou informação (leia-se dentro disso, músicas, livros e filmes), numa defesa direta da indústria fono e cinematográfica.


‘Mas foi sem querer!’


Veja a proposta para o Art. 154-A do Código Penal:




‘Divulgação ou utilização indevida de informações e dados pessoais 154-A. Divulgar, utilizar, comercializar ou disponibilizar dados e informações pessoais contidas em sistema informatizado com finalidade distinta da que motivou seu registro, salvo nos casos previstos em lei ou mediante expressa anuência da pessoa a que se referem, ou de seu representante legal.


Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.


Parágrafo único. Se o agente se vale de nome falso ou da utilização de identidade de terceiros para a prática do crime, a pena é aumentada da sexta parte.’


Em tese, o artigo criminaliza os crackers, aquelas pessoas que nos enviam os tão odiados spams ou lixo eletrônico. Mas, na prática, imagine que você envia por email, para toda a sua lista de contatos, uma piada sobre a eliminação do Palmeiras da Copa Libertadores. Imagine ainda que esta lista inclui contatos profissionais. Se, além de tudo, você não enviar a mensagem com cópia oculta (que esconde os emails dos destinatários), pronto. Se um dos seus contatos profissionais for um palmeirense raivoso, segundo o Projeto de Lei, ele pode te denunciar e tentar mandá-lo para a cadeia: você divulgou emails (dado pessoal) com finalidade distinta da que motivou o contato entre vocês (profissional, lembra?) e sem a autorização expressa dele. Você cometeu um crime. E se seu email é algo como radicalchic@gmail.com, este endereço de email está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar ativado para poder visualizar o endereço de email, ou seja, sua conta não traz seu próprio nome, mas sim, usa um apelido, e o parágrafo único aumenta-lhe a pena.


O Art. 163 também traz problemas semelhantes. Você pode virar bandido sem nem perceber. Ele trata da inserção ou difusão de códigos maliciosos – os vírus são códigos maliciosos, bem como trojans e outros malwares.


Você nunca teve a intenção de espalhar vírus por aí, e mesmo que o tenha feito sem notar, pois muitas vezes disseminamos essas pragas sem nem saber, o fato de você, através de seu computador, ter espalhado cavalos-de-tróia, vírus ou qualquer outro código capaz de causar dano a computadores ou outros apetrechos de comunicação, passa a ser crime.


Violação de direitos é prática criminosa


E para não estragar a festa, o senador guardou a cereja do bolo para o final. Trata-se do artigo que mais fere os direitos fundamentais básicos para a garantia das liberdades individuais. O Art. 22 traz em si graves conseqüências para a navegação na internet, ameaçando a privacidade e o anonimato dos usuários e transformando a rede em um gigantesco aparato de vigilância.


Um dos seus maiores problemas é a exigência de que os provedores de acesso registrem o IP (internet protocol) e a data e hora de uso de cada máquina por, pasmem, três anos. Isso oneraria enormemente os provedores de acesso, já que os gastos de equipamentos aumentariam muito. E, claro, boa parte dessas perdas seriam repassadas àqueles que contratam esses serviços. Mais um ponto para a restrição ao acesso.


Outra conseqüência desse artigo seria a inviabilização das redes abertas e livres. Todos os usuários das conexões wi-fi gratuitas, fornecidas em muitos cibercafés, hotéis, restaurantes, bares e livrarias, navegam pela rede com o mesmo número de IP. O mesmo ocorre em lan houses, todas as máquinas conectadas usam o mesmo endereçamento eletrônico. Com este registro, o provedor de acesso pode até dizer de onde foi cometido o ‘crime’, mas não é possível saber com segurança quem o cometeu. E o que aconteceria com as cidades que estão implementando as redes sem fio abertas, como medidas de inclusão digital? Seria o fim de uma coisa que mal começou.


E como fica a vida de quem tem sua rede wi-fi doméstica invadida por um criminoso? O crime terá sido praticado a partir do seu IP. Como garantir que o criminoso é o proprietário de endereço eletrônico? Medidas como essa não coíbem o crime, somente a nossa liberdade.


Mas o Art. 22 não pára por aí. Seu ponto mais polêmico é o parágrafo III, que coloca sobre o provedor de acesso a responsabilidade de ‘informar, de maneira sigilosa, à autoridade competente, denúncia que tenha recebido e que contenha indícios da prática de crime sujeito a acionamento penal público incondicionado, cuja perpetração haja ocorrido no âmbito da rede de computadores sob sua responsabilidade’.


Os provedores de acesso, então, passam a ter poderes de polícia. Tornar-se-ão o panóptico. O big brother antevisto por George Orwell. Com medo de sanções criminais, seus responsáveis começarão a vetar nosso acesso a informações, a softwares de trocas de arquivos e a sites cujo conteúdo não passa pelos ‘filtros’ por eles instalados. Tanto falamos da falta de liberdade de expressão na China. No Brasil será muito parecido. Estaremos sob um estado de vigilância constante. Imagine a perseguição que se instaurará a movimentos sociais e lideranças políticas de oposição.


O que o país precisa é definir uma lei com os direitos dos cidadãos na comunicação em redes digitais, que garantam a liberdade de expressão, a privacidade e o anonimato e a garantia do controle social dos governantes. A violação dos direitos essenciais definidos nesta lei é que deve ser considerada prática criminosa.

******

Jornalista