No debate das biografias, a mudança de estratégia daqueles que se opõem à liberdade de publicação em nada altera a controvérsia. Advoga-se agora que, em cada publicação, deva o juiz avaliar se o biógrafo se comportou bem ou se alcançou a intimidade do biografado. Em termos práticos, nenhum pesquisador dedicaria anos de sua vida a arquivos, fichários, escaninhos e bibliotecas sob o risco iminente de veto a seu livro. A questão, portanto, consiste em saber se, por ser figura pública, o biografado se sujeita a ter sua vida exposta no relato de pesquisadores que, com as biografias, divulgam e preservam a memória da sociedade.
Curiosamente, os argumentos em contrário, ao pretenderem proteger a intimidade dos famosos, tratam a imagem como objeto de propriedade do biografado. Uma espécie de coisificação da liberdade de expressão. Por esse motivo, seria justo que somente os biografados e seus herdeiros pudessem auferir compensação patrimonial — algo como royalties — pela narrativa histórica que coincide com a participação do biografado. O raciocínio é inaceitável. A liberdade de informação e a memória social são essenciais à sociedade civilizada, valores fundamentais para a cultura social e a capacidade de discernimento individual. Afinal, democracia, além de governo do povo, supõe deliberação pública (em público); e a publicidade, característica da democracia contemporânea, incorpora-se aos direitos fundamentais.
Viver em sociedade importa renúncia constante a aspectos da privacidade. Na vizinhança, no condomínio, na praia ou no Maracanã, nos expomos diariamente a fotos, redes sociais e relatos que, no contexto coletivo, não podem ser impedidos. A pessoa famosa, por maior razão, assim como se sujeita à imprensa, é protagonista da história. Ao assumir posição de visibilidade, insere sua vida pessoal no curso da historiografia social, expondo-se a biografias. Qualquer condicionamento de obras biográficas ao consentimento do biografado ou de seus familiares sacrifica, conceitualmente, o direito fundamental à (livre divulgação de) informação, por estabelecer seleção de fatos a serem divulgados e censura a elementos indesejados pelo biografado.
Domínio da história nacional
A literalidade do Código Civil tem sido felizmente afastada na atividade jornalística. Ninguém mais duvida que o jornal possa publicar, sem autorização prévia, matéria em que famoso político fosse alvo de ovos e tomates sobre ele lançados. Essa compreensão coletiva deve ser estendida às biografias. Abusos e ilícitos evidentemente devem ser coibidos e energicamente tratados pelo Judiciário. Mas eventuais delitos não retiram legitimidade das biografias, assim como os crimes de imprensa não tornam criminosa a atividade jornalística. Assim como nossas instituições democráticas continuam a funcionar a despeito de escândalos recorrentes, a ordem jurídica deve ser aperfeiçoada, com mecanismos de reparação contra toda espécie de ilícito, sem que se impeça a liberdade de informação ou se atribua aos famosos o direito de exploração exclusiva de biografias. É significativo que Louis Brandeis, ministro da Suprema Corte americana e pai da privacidade, tenha afirmado ser a publicidade o remédio para todas as patologias sociais, e a luz solar, o melhor dos desinfetantes (best of disinfectants).
As biografias de pessoas famosas fazem parte da cultura nacional e não podem ser apropriadas. Em nossa democracia adolescente, oxalá possam ser assegurados aos leitores a livre publicação de relatos bibliográficos e o domínio da história nacional.
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Gustavo Tepedino é advogado