O artigo deste Observatório em que Luciano Martins Costa desmonta a matéria de capa da revista Época desta semana (ver “A imprensa black bloc“) deixa uma questão intrigante: “Qual seria o propósito da revista ao correr o risco de ser ridicularizada por tentar ‘desvendar’ um mistério que não existe?”
Fico apenas com a primeira parte da pergunta, pois, embora compartilhe da avaliação do autor a respeito dos black blocs, entendo que ainda há muitas dúvidas a respeito da composição e dos objetivos desse coletivo. Nesse sentido, uma reportagem que conseguisse chegar mais perto dele, ou de uma parte dele que se desse a conhecer, seria muito bem-vinda.
Nem se trata de desqualificar a reportagem por causa das reações que provocou nas redes: muitos a rejeitavam simplesmente porque era “de uma revista das Organizações Globo”. Já nas páginas administradas por black blocs, vários ironizavam a principal fonte da reportagem. Mas seria possível acreditar no que diziam?
Um dos grandes problemas que o mundo virtual instaurou foi a incerteza (ver, a propósito, “A utopia da verdade no exercício do jornalismo“). Dificilmente sabemos quem é quem nesse meio. Portanto, não sabemos em quem confiar. Daí, aliás, a relevância ainda maior da atividade da imprensa, que só se justifica pelo compromisso com a credibilidade, o respeito à verdade factual, independentemente do enfoque privilegiado em suas pautas. Credibilidade é o valor supremo do jornalismo, algo sério demais para se arriscar.
Uma fonte inconfiável
Luciano Martins fala com conhecimento de causa: sabe do histórico de Leonardo Morelli, o homem apresentado como líder dos black blocs e o responsável pela longa negociação que teria viabilizado a presença do repórter numa reunião do grupo, no fim de semana de Finados, num sítio abandonado próximo a São Paulo. O repórter não sabia? Não deveria ter pesquisado mais, antes de embarcar numa canoa que poderia estar furada?
Será possível, apesar disso, acreditar que aquele sítio serve mesmo aos fins anunciados? Que aqueles jovens mascarados são mesmo integrantes do grupo, gente da periferia revoltada contra o “sistema”, alguns tão exaltados que propõem atentados a prédios públicos com dinamite? Ou é tudo uma farsa, que a revista, por incúria ou conivência, ajudou a sustentar?
(Em sua página do Facebook, Morelli fala no adiamento de uma “Operação Dias de Fúria”, que teria sido transferida do próximo feriado prolongado de 15 de novembro para o dia 1º de abril do ano que vem. Sem brincadeira – inclusive pela coincidência com as possíveis comemorações do cinquentenário do golpe militar. Conspiração assim, à vista de todos? Tempos confusos, esses.)
Violência e democracia
À parte essas considerações, a promessa de informar quem financia o grupo é descumprida da maneira mais primária: Morelli fornece uma relação de entidades que, procuradas, negam participação na história. E ficamos perfeitamente confusos: quem fala a verdade? Uma investigação, como deveria ser óbvio, não pode se limitar a declarações “dos dois lados”, precisa ir atrás de documentos, fontes objetivas, que comprovem o que se diz.
Além disso, do ponto de vista editorial, a reportagem que se apresenta como uma tentativa de se aproximar do universo dos black blocs, e adota um tom descritivo ao longo de suas seis páginas, vem logo após um texto que trata das recentes medidas do governo federal para reprimir a depredação nos protestos, com a manchete que exorta: “Todos contra a violência”, sobre foto de black blocs em ação.
Esse texto sentencia que a democracia é incompatível com a violência, baseado numa simplificação conceitual que faria corar qualquer estudante da área: democracia é definida como “o embate, na forma de diálogo, entre ideias e opiniões diferentes”. Já violência seria “a tentativa de impor opiniões pela força”.
Simples assim, sem qualquer referência aos processos de luta que impulsionaram mudanças políticas e mesmo revoluções na história da humanidade.
Se relacionarmos esse texto ao da reportagem no sítio de “treinamento” dos black blocs, a que resultado chegaremos?
Os riscos da falta de credibilidade
Os propósitos editoriais parecem claros: reiterar a condenação a esse grupo. Mas a pergunta original continua sem resposta: por que apostar numa aventura que põe em causa a credibilidade da revista?
Este é um grande problema para uma empresa jornalística, mas é um problema ainda maior para o público. Todos precisamos de um mínimo de informações confiáveis para nos situarmos no mundo. Do contrário, ficamos ao sabor do que circula no ambiente virtual. Bem a propósito, a capa da revista, com a foto de uma mulher maquiada tirando a máscara, estilo femme fatale, logo receberia uma versão fake rapidamente compartilhada na rede: uma montagem muito bem feita que substituía o rosto da mulher pelo da presidente Dilma Rousseff. Como costuma acontecer, muita gente acreditou que era verdade.
O desserviço prestado pela revista com uma reportagem baseada numa fonte tão inconfiável é muito maior do que aparenta ser, nesse tempo de incerteza em que vivemos.
“Ativistas profissionais”
Num caminho completamente distinto, O Globo de domingo (10/11) traz reportagem, que se desdobra no dia seguinte e renderá prováveis suítes, sobre a investigação policial que aponta o recrutamento de “ativistas profissionais” nos protestos no Rio de Janeiro, no quadro político específico de contestação ao prefeito e ao governador.
O levantamento da Polícia Civil teria sido iniciado há cinco meses. Nele, sobressai a figura de um assessor parlamentar do partido do ex-governador Anthony Garotinho nas articulações de atos como o Ocupa Cabral e Ocupa Câmara, além da referência aos tais “profissionais”, recrutados expressamente para atuar em ocupações e passeatas, de acordo com orientações determinadas por quem os paga.
A reportagem não avança muito além disso, respeitando o sigilo das investigações, que caminham no sentido da suspeita já levantada por muitos analistas quanto aos interesses em jogo no quadro político do estado. Mas serve como alerta para aqueles que acreditam na espontaneidade dos protestos e se lançam generosa e entusiasmadamente a eles, sem imaginar que talvez estejam a serviço de causas muito diferentes das que idealizam: não se pode ignorar as engrenagens da política.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)