Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ofensiva autoral

A realização do 1º Festival Internacional de Biografias pouco mais de um mês depois que questões relacionadas ao futuro da publicação do gênero no país foram tema de bate-boca entre intelectuais – que de um lado defendiam a necessidade de autorização prévia para publicação e, de outro, chamavam a medida de censura prévia –, foi, garantem os organizadores, apenas uma feliz coincidência. E o evento que vinha sendo pensado há anos como um espaço para que biógrafos conversassem sobre seu ofício e sobre o mercado que vem crescendo ao longo dos anos – há no catálogo da Saraiva, maior rede de livrarias do País, 4.500 biografias e livros de memórias brasileiros e estrangeiros –, virou palco político e de articulação, em especial às vésperas da audiência pública que debaterá, nos dias 20 e 21, assunto no Supremo Tribunal Federal.

Do encontro, deve sair uma carta redigida e assinada pelos biógrafos presentes e endereçada à ministra do STF, Carmen Lúcia. Participam do evento, que se encerra amanhã, nomes como Fernando Morais, Mario Magalhães, Ruy Castro, Lira Neto e Humberto Werneck, entre outros. Além disso, uma comitiva de editores e de biógrafos, os principais afetados com a indústria das indenizações que anda paralela à publicação de biografias e de livros de história, irá a Brasília para defender a causa.

Ruy Castro disse que se inscreveu para participar, mas não teve respostas. “É preciso ter diversidade, Mário Magalhães e Paulo Cesar Araújo é que devem ir.” Magalhães, vencedor do Jabuti com o retrato de Marighella, foi selecionado. “Vou como cidadão preocupado em abolir uma legislação obscurantista e como biógrafo que pretende continuar contando histórias de vida”, contou.

A ideia da carta foi de Fernando Morais, jornalista que inaugurou no país um estilo de biografia misturada com reportagem – que fez sucesso e inspirou uma nova geração de jornalistas aspirantes a biógrafos. Mas ele não legisla mais em causa própria. Em Fortaleza, reafirmou que não quer mais escrever biografias. A criação do grupo Procure Saber, que reúne, entre outros, Caetano Veloso, Paula Lavigne e Chico Buarque, foi a gota d’água, mas não o único motivo: “As editoras não leem mais seus livros. Dão para o departamento jurídico. Nada contra os advogados. Eles salvam a vida da gente. Cansei.” As 30 caixas que ele tem com material que poderia dar fruto a outros livros deve ficar de herança para autores mais novos. “Vou desovar tudo e vender caju na Praça Buenos Aires”, disse.

Outros biógrafos também já disseram que não escreveriam mais caso a necessidade de autorização prévia seja mantida. “A permanência de entraves para a publicação de biografias teria consequências nefastas para a construção da narrativa histórica, para entender como os indivíduos mudam – como podem ou não mudar – seu tempo e a história”, diz Otávio Marques da Costa, editor da Companhia das Letras. A casa tem alguns dos principais biógrafos contemporâneos em seu catálogo. Chatô, de Fernando Morais, é a biografia nacional mais vendida da editora, com 199 mil exemplares comercializados desde o lançamento, em 1994.

A campeã de vendas é, porém, a de Steve Jobs, com 209 mil exemplares.

Vendas

Traduzir uma obra estrangeira é mais fácil, já que possíveis problemas podem ter sido resolvidos antes que a obra chegue ao país. “Dão, de fato, menos dor de cabeça, mas como vem prontas não representam o mesmo desafio e realização editorial”, considera Tomás da Veiga Pereira, sócio da Sextante. Em 2011, a editora criou um selo para lançar biografias, o Primeira Pessoa, e logo teve seu primeiro problema judicial. Consta como esgotada a primeira edição de Anderson Spider Silva, de Eduardo Ohata. “Essa edição foi recolhida, mas publicamos uma segunda sem o trecho controverso, que está disponível”, conta.

Pereira garante que o gênero vende bem. O título mais vendido é O X da Questão, de Eike Batista, com 203 mil exemplares comercializados. Já saíram por lá obras sobre Dilma Rousseff, José Alencar e Reynaldo Gianecchini. Segundo o levantamento Painel de Livros, da GFK, as biografias ocupam a 5ª posição em vendas, com 6% do mercado, e apresentaram crescimento de 14% entre janeiro e setembro de 2013 em comparação com o mesmo período de 2012.

“A biografia, se bem escrita, vende, mas não é um gênero que tem seu valor fundamentalmente na força comercial. No caso da Objetiva, elas representam menos de 1% do faturamento da editora dos últimos cinco anos”, conta Roberto Feith, um dos maiores defensores da liberação das biografias. “Sua importância transcende em muito a sua força comercial porque, quando bem feita, ela alcança o nível de contribuição ao saber coletivo e à cultura do nosso tempo. Isto é valioso para uma editora e também para a sociedade”, completa.

Entre os títulos do gênero mais vendidos no catálogo da editora está Vale Tudo, sobre Tim Maia, escrito por Nelson Motta. Foram 150 mil exemplares. O segundo lugar, com 30 mil exemplares, é Che, de Jon Lee Anderson.

Sérgio Machado, presidente do grupo Record, diz que o gênero “não vende tanto assim e ainda tem as chateações dos processos”. Ele se arrepende de ter publicado Eu, Alberto Cacciola, Confesso. “É um livro muito bom, mas que não vendeu o que a gente imaginava e ainda deu problema com procuradores mencionados, que ganharam uma grana da gente porque se sentiram ofendidos. Não era nada, mas eles são muito poderosos. Citar alguém do Judiciário, mesmo que seja para elogiar, esse é o principal problema. As indenizações ganham outro volume.”

A editora já perdeu muito dinheiro com defesas e indenizações, diz Machado. “E, mesmo quando ganho o processo, eu perco dinheiro porque tenho que pagar os advogados.” Na hora de publicar, pensa duas vezes. “Lemos com atenção, procuramos nos colocar nas outras partes, mas é muito difícil porque as coisas são subjetivas e envolve terceiros. Há casos em que temos problemas até com as biografias autorizadas. Então, se na leitura chegamos à conclusão que pode dar problema, evitamos.”

Futuro incerto

Machado tem receios quanto ao futuro do gênero e diz que, mesmo que as biografias sejam liberadas, as editoras continuarão apreensivas. “O ideal é que a responsabilidade seja do autor. Afinal, eu não escrevi livro nenhum. Até estou escrevendo, o meu, mas fico com medo. Se vai responsabilizar quem publica, por que não responsabilizar o livreiro, que vende? É a velha história: o sujeito vai numa loja compra uma arma e mata alguém. Você processa a loja de armas, a fábrica?”

Roberto Feith é mais otimista. “Honestamente, não acredito que a necessidade da autorização prévia será mantida. Penso que existe um amplo consenso de que esta medida é uma violação do nosso direito à liberdade e à informação e um equívoco que precisa ser corrigido. Só não está totalmente claro quanto tempo será necessário para que esta mudança seja efetivada.” Ele conclui: “Existe sempre o risco dessa eliminação vir acompanhada de alguma outra medida restritiva, como propõe o advogado Kakay (de Roberto Carlos), mas isto seria um retrocesso terrível. A liberdade de expressão e de conhecimento da nossa história não pode ser fatiada, modulada e ajustada, como ele sugere. Confio que, depois de um debate amplo, que mobilizou inúmeros setores da sociedade, vamos corrigir o equívoco gerado pelo Artigo 20 do Código Civil de 2002.”

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Maria Fernanda Rodrigues, do Estado de S.Paulo