O noticiário que se segue às primeiras prisões de condenados na Ação Penal 470 demonstra a incapacidade, ou desinteresse, da mídia tradicional brasileira de discutir em profundidade as instituições da República.
Exposto ao escrutínio da sociedade com a intensa discussão em torno do caso que envolve personagens destacados da aliança política que governa o país há dez anos, o Poder Judiciário é apresentado ao público em seu aspecto mais rasteiro, nivelado ao bate-boca que domina as argumentações apaixonadas das redes sociais.
Parte dessas discussões é estimulada pelo estado das relações sociais, contaminadas há pelo menos uma década pelo maniqueísmo do jornalismo político. O presidente do Supremo Tribunal Federal, dado a explosões temperamentais e decisões personalistas, tem o perfil adequado para alimentar polêmicas.
A exposição do Judiciário no plano das análises emocionais contribui para consolidar na opinião do público a impressão de que a instituição não serve à cidadania, mas a interesses específicos. Com tantos exemplos de impunidade, é natural que a prisão atabalhoada de alguns dos condenados no caso escandaloso venha a suscitar acusações de arbitrariedade.
Na terça-feira (26/11), a reputação do STF sofre mais um bombardeio por conta da reação de entidades representativas da magistratura, que protestam contra a substituição do juiz encarregado de executar as sentenças de prisão dos condenados enviados a Brasília. Trata-se de iniciativa natural do sistema corporativo, a defender um de seus correligionários, tratado de maneira atrabiliária pelo ministro Joaquim Barbosa, que, segundo a imprensa, vem acumulando exorbitâncias no exercício do cargo.
A desconstrução da imagem pública do presidente da Corte Suprema tende a afetar toda a instituição, o que deveria estimular a imprensa a colocar em debate muito mais do que o bate-boca que domina o cenário.
Vivendo de factoides
Quando a imprensa dirige seus holofotes para o presídio da Papuda, no Distrito Federal, para acompanhar o dia a dia dos condenados famosos, o que se vê como pano de fundo é o descalabro do sistema penitenciário. Quando as lentes da imprensa vasculham a clientela da prisão, encontram casos como o do sentenciado sem sentença, cujo processo desapareceu, e de centenas de outros que cumprem pena sem condenação.
Não é, portanto, o suposto privilégio de um ex-ministro ou de um deputado presos num processo por corrupção que desmoraliza o sistema: é o próprio sistema, que se revela incapaz de produzir Justiça.
Então, o leitor é apresentado à notícia segundo a qual um promotor de São Paulo tenta quebrar o sigilo bancário e fiscal das empresas acusadas de pagar propinas para reduzir impostos municipais. Trata-se, segundo as reportagens sobre o assunto, de algumas das maiores corporações do setor de construção civil, algumas das quais são citadas como financiadoras indiretas de campanhas eleitorais. Pelo menos duas delas se apresentaram espontaneamente para se declarar vítimas de extorsão.
A dificuldade do Ministério Público em concretizar uma medida básica de investigação é parte do diagnóstico negativo de todo o sistema. A impunidade começa a ser articulada já na denúncia, cujas deficiências os advogados de defesa irão explorar mais adiante, e que acabam justificando a profusão de recursos que irão paralisar o processo na fase de julgamento.
Como a imprensa não tem a tradição de produzir dossiês de investigação, mas apenas declarações, o resultado é um noticiário fragmentado, que em pouco tempo deixa de interessar ao leitor.
Não é o caso da Ação Penal 470, que foi capaz de manter o interesse da mídia durante mais de sete anos, ininterruptamente. Com um histórico tão detalhado, seria de se esperar que os jornais tivessem, a esta altura, material suficiente para suprimir qualquer dúvida sobre o acerto das condenações, colaborando para melhorar a imagem do Judiciário. No entanto, o debate em torno da prisão de figurões da política e a fuga do ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato remetem o leitor à origem do processo, reaquecendo velhas dúvidas.
Então, aquilo que para alguns significava o resgate da Justiça e a ascensão do ministro Barbosa ao panteão dos heróis nacionais resvala rapidamente para a hipótese de uma grande trapalhada de final imprevisível.
A imprensa vai viver de factoides até o início das férias forenses. Depois, vem a campanha eleitoral, e veremos a que serve tudo isso.
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