Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As editoras da resistência

Se há livros que fazem a história, não se limitando a relatá-la, há, obviamente, editoras que fazem história. Mas o que fica na nossa memória é o livro e seu autor, não a editora que o lançou. Como se as editoras fossem meras produtoras de papel impresso, às quais o autor encomendou um determinado número de exemplares de seu livro.

Em sua investigação minuciosa e pioneira da atividade editorial no Brasil no período de dez anos em que se deu, a partir de 1974, a lenta agonia do regime militar, Flamarion Maués parte da acepção clássica das editoras como espaços próprios que conjugam autor, mercado, narrativa, estética e projetos políticos de mudança, na melhor tradição da atividade editorial.

A partir desse enfoque e apoiado em minuciosa pesquisa, Flamarion Maués revela o engajamento na luta da sociedade civil contra a ditadura de cerca de 50 editoras, a maioria criadas nessa época, outras já existente mas que mudam de postura editorial. Ele as designa “editoras de oposição”.

Muitas dessas editoras, mostra Flamarion, constituíram-se também em espaços alternativos de militância política, da mesma forma que as redações dos jornais alternativos. Várias delas tinham ligações estreitas com partidos políticos clandestinos.

Embora lenta, a transição é rica de acontecimentos e tumultuada. Inicia-se com a crise do petróleo, que põe em xeque a legitimidade econômica da ditadura, e a eleição de 1974, que exaure sua legitimidade política, e só vai terminar dez anos depois, com grande campanha popular pela eleição direta para presidente.

Nesse período foi promulgada a Lei de Anistia, voltaram exilados e saíram das prisões os presos políticos. Entre os livros memoráveis desse tempo estão A Ilha, de Fernando Morais, publicado pela Alfa-Ômega em 1976, início do período de abertura, e O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, publicado em 1979 pela Codecri, a editora d’O Pasquim. Também é notável, já no final desse período, como um livro que faz história, o Brasil: Nunca mais, da Editora Vozes.

Dias difíceis

Foram centenas os livros publicados nesse período, de cunho político, desde reedições dos clássicos do marxismo, destinadas a repor, por assim dizer, as bibliotecas dilapidadas pelos militares, até os testemunhos das torturas e sofrimentos vividos nas prisões da ditadura, culminando com propostas de uma nova ordem política, democrática, em substituição ao regime ditatorial agonizante.

Surge também nesse período, mostra Flamarion, uma nova prosa de ficção, com características próprias, uma modalidade de romance de resistência, assim como o memorialismo na literatura política, principalmente os diários de prisão, os relatos da repressão política e de tortura.

Ao retomar de modo original o estudo de um período crucial de nossa história, revelando o protagonismo insuspeito de editoras na luta contra a ditadura militar instaurada em 1964, quiçá esta obra inspire estudos sobre outros protagonismos desse período.

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Sobre o livro

O período da abertura política no Brasil (1974-1985) foi marcado, no campo da edição de livros, pelo surgimento ou revitalização de “editoras de oposição”, ou seja, editoras com perfil nitidamente político e ideológico de oposição ao governo ditatorial. Compunham um universo que englobava desde editoras já estabelecidas, como Civilização Brasileira, Brasiliense, Vozes e Paz e Terra, até as surgidas naquele período, como Alfa-Ômega, Global, Codecri, Brasil Debates, Ciências Humanas, Kairós, Livramento, Vega, entre outras. Algumas destas editoras mantinham vínculos estreitos com partidos ou grupos políticos oposicionistas, caracterizando-se como editoras de oposição engajadas; outras não estabeleciam vinculações políticas orgânicas ou explícitas mas, por seu perfil e linha editorial, representaram iniciativas políticas de oposição.

Livros contra a ditadura apresenta um quadro geral do surgimento e da atuação das editoras de oposição no Brasil nesse período, analisando o papel político e cultural que tiveram. Além disso, traz estudos de caso de três pequenas editoras de oposição engajadas, a Editora e Livraria Ciências Humanas, a Kairós Livraria e Editora e a Editora Brasil Debates, mostrando como elas se organizavam, as implicações que suas vinculações políticas e ideológicas tinham em seu projeto e como as questões econômicas limitaram ou influenciaram a sua linha editorial.

Sobre o autor

Flamarion Maués é doutor e mestre em História pela Universidade de São Paulo. Sua tese de doutorado intitulou-se Livros que tomam partido: a edição política em Portugal, 1968-80.Foi coordenador editorial da Editora Fundação Perseu Abramo por 11 anos. Organizou os livros Pela democracia, contra o arbítrio: A oposição democrática, do golpe de 1964 à campanha das Diretas Já (com Zilah Abramo), 2006; e Rememória: Entrevistas sobre o Brasil do século XX (com Ricardo de Azevedo), 1997. Bolsista de pós-doutorado da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e ex-bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian/Portugal. Email: flamaues@gmail.com

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Bernardo Kucisnki, jornalista, professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, autor de Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa (Edusp, 2003).