Recentemente, o povo brasileiro se deparou com um conjunto de práticas antidemocráticas envolvendo o Congresso Nacional sobre ‘o escândalo das passagens’. Trata-se de práticas que vão ao encontro do abuso de poder, desvio de conduta, manobra política, corrupção, e afrontam diretamente os princípios e valores do Estado Democrático de Direito. Paralelamente, observaram-se valiosas intervenções por parte da mídia, que não se hesitou em disseminar reportagens sobre o assunto.
Se para alguns deputados e senadores a opinião pública não tem valor algum, por outro lado notou-se um conjunto de revoltas e manifestações de repúdio emanadas pelas mais variadas representações e organizações da sociedade civil (sindicatos, imprensa, Ministério Público, intelectuais, organizações religiosas). As reportagens revelaram ainda a força dos princípios patrimonialistas presentes nas práticas políticas e governamentais de nossa época.
O Estado moderno em sua complexidade de funções e atuações (segurança, saúde, educação, saneamento básico, assistência social etc.) tem nas instituições públicas o ponto de partida para organizá-lo e prover a sociedade em que atua com benefícios públicos voltados para a coletividade e para a preservação dos interesses comuns. Pelo menos legalmente é isto que deveria acontecer. A origem do Estado foi investigada por estudiosos de diversas áreas do conhecimento filosófico-científico. Não se sabe precisar o momento certo de sua origem em termos de tempo e espaço, mas autores como Platão, Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, dentre outros, dadas às especificidades das análises histórico-conceituais de cada um, demonstraram a importância do Estado enquanto instrumento organizador e regulador da sociedade civil.
O que não descarta a atuação do Estado em práticas como as ocorridas recentemente no Congresso Nacional, especificamente as envolvendo deputados e senadores na chamada ‘farra das passagens’. O mais estarrecedor é que são os nossos próprios representantes, aqueles que deveriam zelar pela legalidade e ética, que passam a cometer atos espúrios contra o Estado moderno, oferecendo constantemente para a massa populacional ‘pão e circo’.
Paz necessária
Historicamente, a existência do Estado moderno se fez necessária a partir do momento em que as complexidades das sociedades e das relações sociais requeriam um instrumento que desse corpo e legitimação frente às adversidades e aos interesses conflitantes existentes entre os membros que compunham a sociedade em termos gerais.
Para Rousseau, o Estado surge da celebração de um contrato social, dada a partir de convenções sociais preestabelecidas em leis sob coação ou consenso, onde os membros condicionavam à sua liberdade individual à liberdade coletiva gerida pela institucionalização do Estado. A noção de contrato social é o conceito central do pensamento deste autor, ao permitir legitimar o ordenamento político das sociedades tornando-o compatível com a liberdade. O contrato permite a expressão política da vontade geral (povo) a partir de um escrutínio universal em que as vontades particulares consentem em renunciar da liberdade em prol de um governo que reconhecem de interesse comum. Assim, o autor considera que o ato que dá origem à unidade do corpo político é a submissão voluntária dos indivíduos às leis universalmente válidas, ou seja, destituídas de qualquer vestígio de arbitrariedade.
Para que isso aconteça, as leis devem resultar da vontade geral, ou seja, devem expressar a vontade do povo. Qualquer que seja a forma de governo, sua legitimidade emana da vontade soberana do povo que jamais é alienável.
Hobbes, por sua vez, analisa que o caráter artificial do Estado moderno, em sua analogia ‘Estado de natureza’ versus ‘Estado de civilidade’, advém da indeterminação da natureza humana – que não inclui nenhum meio de estabelecer imediatamente uma forma qualquer de sociabilidade entre os membros que habitam o mesmo espaço social. A sociabilidade tem que ser imposta aos homens pelos próprios homens. A essa vontade política que funda o Estado, Hobbes a denomina de ‘legitimamente livre’, uma vez que contra ela não se ergue absolutamente nenhum obstáculo, interno ou externo, à formação social.
Ao contrário, o ‘Estado de natureza’, a ‘guerra de todos contra todos’, resultante da liberdade de utilizar todos os meios disponíveis para conservar a própria vida, é um obstáculo à realização do direito natural, sendo considerada uma função essencial em que o Estado deverá atuar para garanti-lo. Assim, este fato mostra a necessidade de que os homens possam estabelecer um pacto, comprometendo-se, por meio das convenções legais, respeitar os acordos estabelecidos por contrato, renunciando assim ao direito natural sobre todas as coisas, com o objetivo de garantir a paz necessária à conservação da vida, agora manifestada em um ambiente de coletividade civil. Mas esse pacto que garante a pacificação da sociedade, ou a racionalização do ‘estado de natureza’, é uma ficção sem uma instância capaz de obrigar os homens a cumpri-lo (Hobbes).
Olhar impotente
Neste caso, a emergência das convenções sociais estabelece a necessidade de observar os contratos cumprindo os acordos feitos, pois a paz social é útil à conservação. Porém, o acordo e o consentimento voluntário têm caráter demasiado precário para assegurar a paz. A eficácia do pacto implica renunciar a um direito natural, em cercear a vontade de uma pessoa tanto quanto a de outra, a fim de garantir a existência de condições objetivas do estabelecimento da confiança mútua em um ambiente de interesses comuns em termos de convivência social.
Para Hobbes, o pacto é apenas um acordo racional quanto à necessidade de respeitar as promessas feitas através de contratos a fim de regular as relações entre os homens, de tal forma que os direitos e deveres de cada um possibilitem a conservação da vida da melhor forma possível. O direito natural permanece sendo o fundamento e a razão de ser do direito manifestado nas leis civis. Assim, com a fundação do Estado inaugura-se a igualdade de direitos de desfrutar dos bens úteis à conservação da vida.
Hodiernamente, as relações entre Estado e povo, na maioria das vezes, encerram-se em relações de pão e circo, já que o Estado, além de conceder direitos e deveres ao povo, está contribuindo para manter a população como mera espectadora, perpetuando-a como massa de manobra. Ao aceitar práticas como as que vêm ocorrendo no Congresso Nacional, observa-se certa passividade da população frente às irregularidades e injustiças praticadas por aqueles que até então deveriam servir de exemplo. Enfim, a noção de Estado Democrático de Direito vivenciada no contexto brasileiro atual deverá ser (re)pensada, haja vista as impunidades que se avolumam frente aos olhares impotentes tanto por parte do Estado quanto da cidadania.
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Professor da Universidade Federal de Viçosa, campus Rio Paranaíba, MG