Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O riso que abalou a ditadura

Ao olhar na televisão alguns capítulos da novela Caminho das Índias, pela impaciência em acompanhar as tramas, até o final, com cenas que se repetem ao longo dos meses, assisti a situações vexatórias entre um aluno rebelde, mal-educado e a sua professora, que passa por constrangimentos. O pior, com apoio dos pais.


Lembrei-me de um diálogo desagradável que se desenrolou numa universidade gaúcha, entre um professor de Anatomia e um discípulo debochado. Sala de aula cheia, todos os alunos presentes, por ser dia de avaliação. O mestre dirigiu-lhe a palavra e fez uma pergunta para o aluno: baixinho, atarracado, óculos de fundo de garrafa, mas contaminado pelo talento e malícia. As respostas eram desconcertantes. Fazia a turma rir e criava constrangimentos.


— Quantos rins nós temos?


— Quatro.


— O senhor está maluco?


— Não. Estou certo. Dois meus e dois seus. Isto se o senhor for um indivíduo normal.


O professor não gostou. Aborrecido e sentindo-se desrespeitado, chamou o bedel (funcionário subalterno), dando-lhe uma ordem:


— Traga-me umas folhas de alfafa (forragem ou plantas para alimentar gado).


O aluno indisciplinado, e que pouco se interessava pelo curso de Medicina, esperava por essa chance para cair fora. A sua aspiração não era ser médico. Tinha outro projeto, ingressar no jornalismo, e de humor. Bom de improviso, pediu para o bedel:


— Para mim, um cafezinho.


Todos subversivos


Tiradas como essa, nas primeiras décadas do século 20, não poderiam ser de outra pessoa. Só ele tinha essa verve salpicada de veneno: Fernando Apparício Brinkerholf Torelly (1895-1971), gaúcho de Rio Grande. Preferiu renunciar à bata de médico, que talvez lhe desse um amanhã melhor, substituindo-a pela tinta do jornal. Nunca se arrependeu. Imortalizou-se como mestre na arte do humorismo. Deixou inúmeros discípulos, como Stanislaw Ponte Preta, Jaguar, Millôr Fernandes, ‘Macaco Simão’ etc. Usava o pseudônimo de ‘Barão de Itararé’, nome de um lugar onde se daria uma batalha, da qual participaria, mas que não houve.


O título de nobreza que se autoconferiu tem motivo na participação da revolução de 1930, liderada por um outro baixinho invocado, sorridente, esperto. Porém, ao virar ditador, agia com mão de ferro – Getúlio Vargas. Torelly não escapou das violências do ditador (muy amigo) e de seu Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, do qual sofreu perseguições, espancamentos, prisões e numa delas ficou na Ilha Grande, temida pelo rigor e violências. Todos acusados de subversivos. Juntou-se a gente importante.


Lá estava o escritor Graciliano Ramos, que ignorava o porquê da condenação, sem julgamento, e nos deixou uma ideia do local, ao escrever Memórias do Cárcere. Ficaram amigos. Estabelecido no Rio de Janeiro, fundou o seu jornal, A Manha, uma réplica de um outro, de título A Manhã. De tanto ser incomodado com as prisões e pancadarias, pelos artigos e frases que faziam rir a todos e tremer de ódio aos adversários, colocou uma placa na porta do periódico, com esta frase:




‘Entre sem bater.’


A advertência foi considerada um deboche. Lá se foi o baixinho de novo, debaixo de empurrões, à prisão.


Nada lhe tirava o humor fino e mordaz. Em liberdade e sem emprego, dirigiu-se ao diretor e proprietário de O Globo, Irineu Marinho, para pedir-lhe trabalho. Perguntado sobre o que sabia fazer, respondeu: ‘Tudo. Desde varrer a redação até dirigir o jornal’. Irineu ficou calado, simpatizou com aquele tipo engraçado e o admitiu. No outro dia aparecia na primeira página de O Globo com texto assinado.


A falta que faz


O jornalista, com o seu bom e terrível humor, fez rir o país e ensinou uma geração. Releio para me divertir os Almanhaques e livros do grande ‘Barão de Itararé’, que chamava G. Túlio Vargas e não se incomodava com os efeitos de suas frases: ‘1930: Vamos deixar como está para ver como fica / 1945: Vamos deixar como está para ver como eu fico’. O texto será enriquecido com mais algumas tiradas geniais desse grande jornalista:




‘Mais vale um galo no terreiro que dois na testa.’


‘Quem empresta, adeus.’


‘Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato.’


‘A forca é o mais desagradável instrumento de corda.’


Grande ‘Barão’, e que falta nos faz.

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Jornalista