Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mas a festa continua

A culpa, decididamente, não é dos meios de comunicação. Jornais, revistas, tevês, rádios, portais, internet em geral não têm a força necessária para botar um pouco de juízo em pessoas sem contato com a realidade e que perderam a noção do perigo. Não foram os jornalistas que convenceram Renan Calheiros a, no auge das manifestações do meio do ano, pegar um jatinho com dinheiro público e ir ao casamento de um amigo; não foram os jornalistas que puseram na cabeça do deputado estadual Gustavo Perrela, do Solidariedade, que as despesas de combustível de seu helicóptero deveriam ser pagas com dinheiro público, em parte da Assembleia mineira, da qual é integrante, em parte do Senado, integrado por seu pai Zezé, do PDT (nem foram os jornalistas que descobriram que seu helicóptero estava transportando quase meia toneladas de cocaína). E, se algum jornalista ajudou a bolar o inacreditável plano de José Dirceu de virar gerente de hotel, não agia como jornalista, mas como correligionário, como companheiro de lutas.

Mas a culpa, decididamente, é da imprensa, ao limitar-se a noticiar um absurdo atrás do outro de maneira isolada. O Tribunal de Justiça de Minas quer criar onze novos benefícios para seus desembargadores, que já recebem R$ 25 mil mensais (auxílio livro, ajuda financeira para mudar de cidade, adicional de férias, com gastos de aproximadamente R$ 40 milhões por ano). Demóstenes Torres foi cassado por corrupção; não servia para o Senado, mas continua servindo para receber integralmente seu salário do Ministério Público. José Genoíno foi condenado à prisão, teve de renunciar para não ser cassado, mas seus vintinho por mês pingam religiosamente na conta. E ele acha pouco: queria um pouco mais de 26. Privilégios, privilégios, privilégios – sempre que a imprensa descobre, publica. Mas publica como se fosse apenas um escândalo, uma coisa isolada.

Não é: tudo isso faz parte de uma mentalidade segundo a qual certos grupos têm o direito divino de mamar nas tetas do Tesouro e a população que se dane. Há quase 40 anos, o repórter Ricardo Kotscho fez para O Estado de S.Paulo uma notável série de reportagens, que incorporou uma palavra ao dicionário brasileiro – “mordomias” – e mostrou que, longe de ser um desvio individual, o desfrute indevido do dinheiro público era um código de conduta aceito pelos poderosos e seguido por eles. Incluía todas as vantagens possíveis, de dinheiro para a compra de roupas até o pagamento das despesas de escritórios eleitorais longe de Brasília, de automóveis com vários motoristas à disposição a uma infinidade de assessores na capital federal e fora dela – tantos assessores, aliás, que boa parte se dedicava apenas à atividade de cabo eleitoral, pago com o seu, o meu, o nosso dinheiro.

A série de reportagens de Ricardo Kotscho mostrou ao público o Brasil real, em que os poderosos se julgavam com direito a tudo. Mudou alguma coisa? Durante algum tempo, sim: os bandidaços pelo menos se tornaram mais discretos. Mas reportagens completas desse tipo precisam ser feitas de tempos em tempos, mostrando quem se passa por santo, mostrando a volúpia que esse pessoal tem de aproveitar o dinheiro dos outros (ou haverá alguma outra explicação para o presidente de um tribunal ter à disposição cinco automóveis, sendo que um deles é considerado de luxo até na Europa – quando, por mais eminente, poderoso, sábio e fabuloso que seja, jamais conseguirá usar mais de um por vez?).

Essas reportagens não têm sido feitas, pode-se imaginar, pelo custo de bloquear um repórter de alto nível pelo tempo necessário, com as viagens necessárias, e pelo gasto de espaço caro. Mas, se não é para isso, para que existem os jornais? Mais: não é com notícias de três linhas que os jornais enfrentarão a concorrência da internet, onde as notícias de três linhas têm mais cores, mais movimento e renovação mais constante.

Sua Excelência, o leitor, merece; o país precisa; os jornais necessitam vitalmente desse tipo de sopro de vida.

 

O show do trilhão

Em certo momento da vida, o estudante tem de optar entre Exatas e Humanas. Em geral, Matemática é a chave: quem gosta de lidar com números vai para Exatas. Quem tem problemas com as contas escolhe Humanas – e, deste grupo, sai uma boa parte dos acadêmicos de Jornalismo. Para algumas pessoas, entre as quais se inclui este colunista, estudar a relação entre os números é uma tortura; e colocar as letras e palavras no melhor lugar possível, de preferência de maneira correta, é um prazer. Jornalistas como Rolf Kuntz, que circulam com igual desenvoltura entre números e palavras, são exceções. Notáveis, mas raros.

Mas, por mais que se deteste qualquer tipo de número, jornalista não pode se afastar definitivamente dele. É preciso, por exemplo, ter o número do telefone de quem sabe fazer contas. É essencial saber com que amigos é possível conversar sobre matérias econômicas, para mantê-las lógicas e bem articuladas. E é preciso prestar atenção em algumas coisas: se o governo investiu 3 milhões de reais em algum projeto de janeiro a novembro, não vai completar o investimento de 4 bilhões de reais até o final do ano. E estudar um pouco, talvez. Mesmo que as contas nos deem alergia, vale a pena fazer uma forcinha para aperfeiçoar-nos profissionalmente.

 

Vale mesmo?

Pois é: o Instituto de Economia de uma grande universidade pública brasileira está promovendo um curso de Economia para jornalistas. E anuncia 88 horas de aula em 22 aulas, aos sábados, das 9h20 às 12h50. Fazendo as contas, as 88 horas são 77. Qual a explicação? A resposta à pergunta foi a seguinte (mantida a grafia original): “O curso tem 88 horas/aula com 22 encontro no horário de 09:20h às 12:50h sendo que nunca acaba as 12:50 e sim às 13 horas. Já deixamos os espaço para caso o professor precise ficar um pouco mais em sala de aula”.

Agora dá para entender como as coisas acontecem, e por que acontecem.

 

Geleia geral

Afinal de contas, que é que pensa o governo uruguaio sobre sua política em relação a drogas e a permissão da venda legal de maconha? Um grande jornal impresso brasileiro publicou a seguinte declaração atribuída a Raquel Peyraube, médica, assessora de Pepe Mujica na área:

“O Uruguai entendeu que era preciso mudar a política para melhorar a segurança. A população, de um modo geral (62%), é contra a nova política, mas o uso da cannabis medicinal agora tem 50% de aprovação, e isso está crescendo. Esperamos que este momento histórico seja o princípio do fim para a América e para o mundo todo”.

Aí entra aquela parte de o jornalista ler de novo o que escreveu e verificar se faz sentido. A declaração atribuída à dra. Raquel não faz sentido.

 

Boa notícia

Eliane Brum, colunista de ótimo texto, está de volta: de 15 em 15 dias, na edição brasileira de El País, com tradução para o espanhol e publicação em 34 países (ver aqui).

 

Excelente notícia

Um novo livro de Ruy Castro chega à praça: Ruy Castro Letra e Música. Na quarta-feira (11/12), a partir das 19h, Ruy Castro autografa a obra no mezanino da loja de Artes da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Avenida Paulista, em São Paulo. Ruy Castro é um excelente pesquisador, seu texto é bem humorado, refinado, de primeira linha. Vale pelo livro, pelo autógrafo, pela chance do bate-papo.

 

Volta ao mundo

O livro saiu primeiro em inglês, e teve excelentes críticas: “Leitura estimulante e prazerosa”, The Economist; “Relato convincente e acessível da história recente do Brasil, que se lê como um thriller”, Financial Times. O prefácio é de Bill Clinton, que assim descreve o livro:

“Em dois mandatos, Fernando Henrique Cardoso conduziu seu país com coragem, visão e elegância por uma paisagem internacional cheia de perigos em potencial. Assumiu a presidência de uma jovem democracia com uma economia instável e transformou o Brasil numa nação madura e próspera, respeitada em todo o mundo. Suas memórias contam a história de sua notável liderança como presidente, de sua fascinante vida pessoal, de seus extraordinários encontros com outras personalidades históricas e, talvez de maneira particularmente comovedora, de seu amor da vida inteira pelo Brasil. Ninguém mais que ele serviu ao Brasil tão bem nem de maneira tão fiel.”

O improvável presidente do Brasil é a visão pessoal de Fernando Henrique sobre a vida recente do país e às transformações de que participou. Comenta os presidentes que o antecederam, fala de sua infância, do relacionamento com os pais – talvez seja seu livro mais pessoal, e é o último em que teve a colaboração da esposa, Ruth Cardoso. Saiu nos Estados Unidos há sete anos; e, exatamente pela exposição de seus sentimentos, demorou tanto a editá-lo no Brasil. Vale a pena.

 

Viva e sobreviva

Um dos autores, Ricardo Nakayama, é matemático. Outro, José Roberto Romeiro Abrahão, é advogado, jornalista e escritor. O prefaciador do livro, Ives Gandra Martins, é um dos mais conhecidos juristas do país.

Surpresa: é um livro sobre o Sotai, uma arte marcial da qual os três são adeptos. Os três são praticantes avançados de artes marciais. E seu objetivo, ao lançar Não seja mais uma vítima, é ajudar o cidadão pacífico a sobreviver ao banditismo. O Sotai dá três conselhos básicos a seus praticantes, quando ameaçados por um marginal:

1. Não o confronte. Fuja, se possível;

2. Se o marginal quiser apenas o dinheiro, entregue-o.

3. Mas, se a intenção do marginal for matá-lo, transforme o medo em raiva e destrua a ameaça com as técnicas de defesa e ataque que aprendeu.

São ensinamentos, dicas de segurança, conselhos úteis. É um livro interessante; e remete a um site altamente informativo, www.sotai.com.br

 

Como…

De um importante site regional:

** “O 14º latrocínio – roubo seguido de morte – da professora (…) na manhã desta quarta, no bairro (…), levou a oposição a criticar a política de segurança (…)”

Notável, digna do Livro dos Recordes: este colunista nunca tinha ouvido falar numa pessoa que tivesse sido vítima de mais de um latrocínio.

 

…é…

De um grande portal da internet, que caprichou no texto:

** “Sem jogadar desde agosto, quando se encerrou o contrato com o (…), o meia conseguiu a absolvição da pena de 1 anos longe das quatro linhas por uma acusação de doping (…)”.

Agora, o craque poderá voltar a jogadar e até a destacadar-se em campo.

 

…mesmo?

De um importante veículo de informações sobre comércio:

** “(…) quer produzir chocolates importados no Brasil (…)”

Claro; mas, se os chocolates forem produzidos no Brasil, deixam de ser chocolates importados.

 

Frases

>> Do jornalista Sandro Vaia: “Então ficamos assim: José Dirceu, com seu salário de 20 mil reais como gerente de hotel, ganharia muito mais do que o próprio dono da empresa proprietária do Saint Peter”.

>> Do colunista José Simão: “Lei de Murphy! O PIB caiu com o Mantega pra baixo!”

 

E eu com isso?

Houve época em que o noticiário da vida dos artistas era tão Fla x Flu quanto o noticiário político, hoje: era quando Marlene e Emilinha Borba despertavam paixões de torcidas opostas, quando os fãs de Dick Farney odiavam Lúcio Alves (e ficaram perplexos quando ambos, juntos, cantaram Tereza da Praia, de Tom Jobim), quando os fãs de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins queriam se pegar a tapa porque seus ídolos tinham se separado e mantinham um brilhante duelo musical.

Hoje, tudo bem: é um mundo de paz, amor, alegria, diversão, namoro, passeios com a família. No mundo real, as coisas só ficam assim boas e suaves na hora de dividir o dinheiro público entre os de sempre.

** “Rodrigo Santoro beija atriz em set de filme”

** “Príncipe William mostra que entende de vôlei

** “Gisele Fraga e Nelo Neto curtem juntos dias de lazer”

** “Rod Stewart assiste a uma partida de futebol”

** “Mateus Verdelho faz nova tatuagem na perna”

** “Filha de Paul Walker aparece em sua casa”

** “Edson Celulari leva a caçula Sophia à aula de balé”

** “Sharon Stone de vestido preto em festival”

** “Morena, Alessandra Ambrosio faz ensaio gótico na praia”

** “Lady Gaga se inspira em Mona Lisa para circular

** “Thiago Rodrigues passa a tarde com o filho”

** “Leonardo DiCaprio se diverte com amigos em sacada de hotel em Miami”

 

O grande título

Belíssima safra: há até títulos que poderiam ser mal interpretados, já que cabeça de jornalista vive cheia de malícia, mas é fácil recolocá-los nos eixos.

Do portal online de um grande jornal nacional:

** “Grupo britânico compra dona da Wizard por US$ 2 bilhões”

Calma: de maneira elíptica, estão dizendo que foi comprada a empresa que era dona da rede de escolas de línguas.

De um grande jornal impresso, de circulação nacional:

** “Uma idosa morreu foi morta num assalto”

Isto é o que se chama de título matador.

E o grande título:

** “Fernanda Lima apresenta Amor e Sexo de patins”

O casal deve ser ótimo em patinação sincronizada!

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação