Há uma cena memorável num dos últimos episódios da primeira temporada de Mad Men. Don Draper, o gênio da publicidade ainda em plenos anos 1950, explica para dois executivos da Kodak o valor do carrossel de slides. “Nostalgia, em grego, quer dizer a dor de uma antiga ferida”, ele diz, sua voz suave. A sala, escura, é iluminada apenas pelo projetor. Na parede, fotos de família giram. “É uma fisgada no coração, tem muito mais poder do que apenas memória.” A tecnologia digital vem mudando nosso cotidiano de tantas maneiras distintas, e vivendo um dia após o outro frequentemente não nos damos conta. Fotografias, por exemplo, mudaram de significado.
Por que fotografamos? Não a foto profissional, o registro jornalístico ou artístico. Fotos de família servem para quê? A resposta imediata que surge é: para lembrar. Abra um álbum de fotos com mais de vinte anos. Ninguém passa rápido pelas imagens. Cada uma desperta uma emoção. Como sugere Don, é mais que memória. Por alguns segundos somos preenchidos pelas emoções daquele momento. Revivemos um pouco.
As fotos dos anos 60 são, quase sempre, em preto e branco. O corte quadrado não era raro. Nítidas. Na década seguinte, perdem essa nitidez mas ganham cor. É, graças à tecnologia de fixador do tempo, uma cor que amarelou, ressaltou o vermelho, perdeu o azul. Conforme avançam os 80 e os 90, as cores se estabilizam e a nitidez volta. O fluxo, aí, se interrompe. Tínhamos, talvez, umas cem fotos de toda a infância. Quem sabe, 300. Como era caro fotografar. É o que tiramos por mês. Ou por semana.
Qualidade precária
Fotografias significavam nostalgia.
Na semana passada, o site Buzzfeed pôs no ar um divertido filmete, explicando fotografia em filme para a garotada moderna. Precisávamos pensar: um filme de 24 poses obrigava cada pessoa com a câmera na mão a se concentrar. É preciso definir que imagem, afinal, merece ser registrada. Ir à loja buscar as fotos reveladas e ampliadas era sempre uma experiência carregada.
Fotografias digitais não entraram de repente em nossas vidas. Foi um processo lento. As primeiras câmeras já estavam à venda no mercado em finais do século. Eram, porém, máquinas caras, com um ou dois megapixels, lentes ruins, baixa qualidade. Não temos registros amadores do Onze de Setembro. Nem em Nova York as câmeras digitais andavam por todos os bolsos.
A primeira década do século 21 foi dominada por câmeras fotográficas digitais que melhoraram incrivelmente de qualidade. Os chips de captação aumentaram sua capacidade, fidelidade. Ao mesmo tempo, as lentes, que fazem a real diferença, sofisticaram-se.
Se passamos a tirar mais fotos com as digitais, ainda assim elas não eram onipresentes. Já há câmeras no celular faz vários anos. Mas câmeras decentes não fazem muito tempo e elas vêm, mais ou menos, no mesmo passo que chegam os smartphones. É uma tríade radical: câmera no celular conectado à internet. Sempre no bolso. Não há registros amadores do Onze de Setembro, o enforcamento de Saddam Hussein foi filmado com qualidade precária e divulgado vários dias depois, a prisão de Muamar Kadafi é nítida e estava online numa questão de horas.
Narrativa no caos
Tiramos muito mais fotografias. Não é mais registrar a viagem de férias ou o momento exato em que o filho sopra a velinha. É o almoço. Uma careta. Bate outra para ver se fica melhor. E uma terceira. Jogamos no Facebook, no Instagram. Alguns likes e comentários depois, perdeu-se no esquecimento. Talvez para sempre. Se os princípios econômicos valem, no momento em que aumentou a oferta, a demanda arrefece. Talvez o excesso de fotografias faça com que percam seu valor.
Ou talvez não.
Na verdade, ainda é cedo para dizer. Talvez esta aqui, mesmo, seja uma coluna nostálgica. Com uma pitada de ludita. E as dezenas milhares de fotografias que tiramos anualmente ainda terão seu valor emocional. Talvez novas profissões surjam: o editor de imagens, por exemplo. Capaz de criar uma narrativa no caos. Ora, pois. Quem sabe?
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Pedro Doria é colunista do Globo