Verão é a época do sol nas praias e de baratas nos condomínios, pois esses insetos onívoros, que habitam o planeta há 300 milhões de anos, são cosmopolitas e excitáveis pelo calor. Algo como baratas tontas parecem os frequentadores de praias no Rio, tal como descritos pela imprensa local.
O verão não é aqui um mero fato climático, mas um acontecimento jornalístico de vários meses. De um lado, os banhistas da Zona Sul, cuja maioria comporta-se como se estivesse numa passarela; do outro, os provindos da Zona Norte em ônibus superlotados e olhados com a suspeição característica de todo olhar discriminatório. E com medo, certamente, o que gera o fenômeno da barata tonta.
Medo de quê exatamente? De arrastões, ou seja, dos bandos de adolescentes e crianças que avançam como insetos predatórios sobre vítimas potenciais para arrebatar-lhes cordões de ouro ou celulares. As armas estão ausentes desses ataques, o que de fato funciona é o temor que infligem a uma classe média já amedrontada pela costumeira sensação de insegurança que envolve hoje a cidadania urbana. Assim como no calor a sensação térmica pode ser muito superior à realidade medida pelos termômetros, a sensação de medo pode ser muito diferente das causas supostamente reais.
Na origem
Pode ser um clichê dizer-se que, se alguém sonha com bandidos, estes são imaginários, mas o medo é real. Vale, porém, repeti-lo aqui, já que a imprensa e a consciência de classe social têm uma parte importante na disseminação dessa presumível realidade confrontada a certo imaginário urbano. Neste, moldado na ambiência da classe média confortável, o espaço da cidade é guetificado, devendo os mais pobres conformar-se em pisar apenas no solo ou nos ambientes que lhes teriam sido atribuídos por destino. Está nos noticiários o episódio de Vitória (ES), em que alguns jovens corridos de um baile funk buscaram a segurança de um shopping e foram cercados e obrigados pela Polícia Militar a sentar-se no chão, diante dos olhares amedrontados de consumidores. Explica-se: eram negros.
O episódio é tratado pelo noticiário como algo excepcional. No entanto, semanas atrás, a propósito do dia em que a grande imprensa carioca abriu espaço de manchete para um arrastão na praia de Ipanema, há depoimentos bastante contraditórios. Uns atêm-se à literalidade da foto, publicada na primeira página do Globo, em que guardas municipais desferem golpes de cassetete em menores, membros de um grupo de arrastão.
Outros contumazes frequentadores de praia fazem relato desta ordem: “Eu ia chegando à praia quando vi, na altura da Cruzada São Sebastião (lugar de gente pobre no Leblon), alguns negros levantarem-se para caminhar. Ato contínuo, alguém gritou ‘arrastão!’, e muita gente correu como barata tonta, sem motivo nenhum, gerando tumulto” (depoimento feminino não registrado em jornal). É sempre sadia a ausculta comunitária, para além da estereotipia da notícia.
Entre o shopping de Vitória e a praia da Zona Sul carioca há distância geográfica, mas enorme proximidade quanto ao espírito de discriminação. É isso o que dá realidade ao medo de bandidos imaginários. Não que estejam em baixa a delinquência e a criminalidade – em todos os quadrantes sociais. Por um lado, o episódio da apreensão do helicóptero de próceres do Poder Legislativo com uma carga enorme de cocaína a bordo dá uma boa ideia (a quem não parecia saber disso) de como chegam aos centros urbanos as drogas e as armas. Por outro, a desmoralização progressiva do Estado e da polícia incentiva a progressão dos ilegalismos e da violência social.
Não é a falta de lei (há lei em excesso, aliás), mas o esfacelamento da regra social (o incremento da corrupção estatal, a falência dos valores comunitários, a indiferença das elites, o exacerbado narcisismo das classes de consumo etc.) que está na origem da epidemia da insegurança social.
Alhos e bugalhos
Sim, a violência é epidêmica, no sentido radical ou originário desta palavra (epi-demos), isto é, aquilo que incide diretamente ou por contágio sobre o povo. Há primeiramente um estado de violência, que coincide com uma organização social discriminatória em vários planos, inclusive o da indiferença das elites frente à realidade do território. Em seguida, a violência anômica, que é aquela dos homicídios e dos assaltos.
Não há relação de causa e efeito entre uma e outra, mas há conexões de natureza psicossocial. A epidemia decorre do enfraquecimento do laço comunitário (família precária, precarização do trabalho, segregação territorial, exaltação narcísica do consumo, tráfico e consumo de drogas etc.).
Os arrastões são anômicos? Sim; são socialmente incômodos? Sim. Não há como paternalizar, com a hipocrisia das belas almas, esse tipo de comportamento, que é virtualmente criminogênico e que, em meu modo de ver, deve ser contido. A análise compreensiva de um fenômeno não obriga ninguém a eventualmente suportá-lo na pele.
Mas o dito arrastão não está no mesmo patamar da preocupante criminalidade urbana em todas as capitais brasileiras. É, antes, um fenômeno de rua, não tão dessemelhante daquele outro, predatório, que visa monumentos, lojas e bancos. Ambos resultam de uma crispação da atmosfera emocional (oethos), uma fricção entre espaços e modos de vida diferentes – entre os privilegiados dos serviços essenciais e os carentes sistemáticos – tornada mais visível pela própria mídia, que assesta os seus holofotes para a elite urbana dos colunáveis, das celebridades, dos que saem correndo quando avistam negros na praia. Na prática, tanto o arrastão quanto a predação é como um rastilho de pólvora: basta uma fagulha para que as ruas ou as praias peguem fogo.
Misturando alhos com bugalhos, dando ao mínimo as feições do máximo em função da imagem-sensação, a imprensa expõe a sua invertebração intelectual, a incapacidade de mostrar compreensivamente a realidade, alinhando-se com os que temem bandidos imaginários. É o princípio da barata tonta.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro