Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O apetite por holofotes

A literatura de divulgação científica tenta construir uma ponte entre dois continentes: a arena científica e a opinião pública. Não é tarefa trivial, mas também não é um bicho de sete cabeças. Quando o trabalho é bem feito, o resultado pode ser satisfatório e proveitoso para ambos os lados. Haveria algum segredo? A rigor, não existe uma fórmula mágica, que possa ser usada indiscriminadamente por qualquer autor sob qualquer circunstância.

Em certos casos, a adoção de um simples princípio norteador – algo do tipo “a literatura de divulgação deve aproximar os continentes (i.e., ciência e público), de tal modo que o leitor saiba não apenas o que os cientistas estão descobrindo a respeito do mundo, mas como e por que eles estão fazendo isso” – parece funcionar bem. Ocorre que a literatura de divulgação produzida no país raramente se preocupa em explicar o “como” (i.e., a metodologia) e o “por quê” (i.e., o contexto teórico) do trabalho científico. Em vez disso, prefere ressaltar os achados (científicos) e as invenções (tecnológicas) “mais sensacionais do mundo”, como se o mero choque do leitor com as últimas novidades fosse por si só capaz de mobilizá-lo. (Sobre a distinção entre ciência e tecnologia, ver, neste Observatório, “Ciência, tecnologia, embromação”.)

Popularidade e relevância nem sempre coincidem

Existem bons livros de divulgação. Alguns deles foram escritos por quem vive o dia-a-dia da arena científica (cientistas), outros, por algum visitante ocasional, notadamente jornalistas e escritores em busca de uma “boa história”. No primeiro caso, é possível identificar duas abordagens principais. Em uma delas, o autor trata de sua área de atuação (e.g., EHRLICH 1993, WILLIAMS 1998), ainda que o seu próprio trabalho não seja o centro das atenções; na outra, o autor se volta para o trabalho de outros cientistas (e.g., SINGH 2006). Esta última abordagem, aliás, é a que costuma ser adotada nos livros escritos por jornalistas (e.g., GARRETT 1995, WEINER 1995, WRIGHT 1996). Em ambos os casos, os resultados às vezes são tão bons que as obras passam a ser citadas como referências bibliográficas pelos próprios cientistas.

O número de boas obras de divulgação disponíveis ao leitor brasileiro ainda é bastante acanhado. (Sobre o mercado editorial, ver, neste Observatório, “Muito papel, poucos títulos”.) Para ter uma ideia, basta ver o que se passa em outros países. Por exemplo, o total de títulos publicados por uma única editora portuguesa – Gradiva (ver aqui, indo depois para o item “Ciência Aberta”) – equivale em número (e, arrisco dizer, supera em qualidade) ao conjunto de obras semelhantes publicadas por todas as grandes editoras brasileiras. (Não custa lembrar: tanto a população como o PIB do Brasil são muitos maiores que os de Portugal – a população, quase 20 vezes; o PIB, pouco mais de 10.)

Mas esse não é o único problema. Não bastasse a reduzida quantidade de títulos, as editoras brasileiras costumam publicar e republicar obras dos mesmos autores. Embora alguém possa dizer que isso tem uma justificativa econômica imediata, trata-se, no médio prazo, de um verdadeiro suicídio, gerando embotamento e provincianismo. A convivência com poucos autores tende a sedimentar no leitor, entre outras coisas, a noção de que cada disciplina científica é um território governado por um ou outro “cacique”, e não um vasto domínio aberto e provisório (ainda que regrado) a respeito de certos mistérios do mundo. Outro problema recorrente é que as distorções típicas das obras de divulgação – derivadas em boa medida da simplificação excessiva, visando ampliar o leque de leitores – costumam afastar o leitor daquilo que de fato se passa no âmbito da ciência.

O caso da biologia evolutiva

No fim das contas, os autores mais conhecidos do público nem sempre são os mesmos que escrevem as obras cientificamente mais relevantes. Veja o caso da biologia evolutiva, uma das áreas que mais despertam o interesse do leitor, sendo, por isso mesmo, uma das mais exploradas pelas editoras.

Nas décadas de 1980 e 1990, o cientista estadunidense Stephen Jay Gould (1941-2002), talvez um dos divulgadores mais conhecidos de todos os tempos, era um nome quase que obrigatório em qualquer conversa informal a respeito das “últimas novidades” em torno da disciplina. Já naquela época, porém, sua obra era vista com desconfiança e restrição por muitos integrantes da comunidade científica (ver, por exemplo, o artigo “‘Confusion over evolution’: An exchange”, publicado na The New York Review of Books, em 14/1/1993).

Fenômeno algo semelhante ocorreu com outros autores, como o renomado físico estadunidense Carl Sagan (1934-1996). Mais recentemente, após o falecimento de Gould, outros nomes surgiram ou ampliaram seu espaço. Foi o que aconteceu entre nós com autores como Ernst Mayr (1904-2005), E. [Edward] O. [Osborne] Wilson (nascido em 1929), Carl Zimmer (nascido em 1966) e, claro, Richard Dawkins, este último alçado hoje à condição de celebridade internacional. (Um dos exemplos mais melancólicos de que a fama turva o juízo do público foi a eleição de Dawkins ao posto de mais importante intelectual vivo – ver matéria “Richard Dawkins named world’s top thinker in poll”, de John Dugdale, publicada no The Guardian, em 25/4/2013.)

Com uma pequena ajuda da imprensa

O biólogo e escritor britânico Richard Dawkins (nascido em Nairóbi, Quênia, em 1941) estudou na Universidade de Oxford, onde fez também sua carreira acadêmica. Embora tenha trabalhado algum tempo fora da Inglaterra, lecionou em Oxford durante quase 40 anos (1970-2008). Entre 1968 e 1980, publicou (sozinho ou em coautoria) cerca de uma dezena e meia de artigos científicos originais, o mais importante dos quais talvez tenha sido um artigo publicado em coautoria em 1979 (ver DAWKINS & KREBS 1979). Desde a década de 1980, no entanto, suas publicações técnicas se resumem quase que exclusivamente a capítulos de livros, cartas, comentários a respeito do trabalho de terceiros e respostas a críticos; os artigos científicos originais desapareceram.

Em compensação, deu início a uma bem-sucedida carreira literária. Tudo começou com O gene egoísta (1976), até hoje a sua obra de maior impacto. (A propósito, o conceito de “gene egoísta”, ao contrário do que alguns imaginam, não foi criado por Dawkins; ele apenas ajudou a popularizá-lo – ver COSTA 2011.) Em 1982, apareceu O fenótipo estendido, seu livro mais técnico e o único ainda hoje sem uma edição brasileira. Em seguida, foi a vez de O relojoeiro cego, talvez o seu segundo livro de divulgação mais importante. (Sou de opinião que tudo o que ele tinha de relevante a dizer foi dito nessas três primeiras obras.) A partir de meados da década de 1990, Dawkins publicou em média um novo livro a cada dois ou três anos. Eis a lista completa (título da edição brasileira; entre parêntesis, o ano de publicação da versão original): O rio que saía do Éden (1995), A escalada do monte improvável (1996), Desvendando o arco-íris (1998), O capelão do diabo (2003), A grande história da evolução (2004), Deus, um delírio (2006), O maior espetáculo da Terra (2009) e A magia da realidade (2011).

No primeiro semestre de 2013, apareceu An appetite for wonder (ainda sem título em português), livro que corresponderia ao primeiro volume de suas memórias e cuja edição brasileira já deve estar no forno. A imprensa, como se tornou costume ao longo dos anos, tem sido generosa com suas peripécias (ver, por exemplo, a matéria “Science, evidently, was in his genes”, de Janet Maslin, publicada no The New York Times, em 18/9). Mesmo quando ele decide falar bobagens gratuitas contra autores rivais (e.g., “Richard Dawkins in furious row with EO Wilson over theory of evolution”, de Vanessa Thorpe, publicada pelo The Guardian, em 23/6/2012; versão em português, “Richard Dawkins faz crítica furiosa a livro de E. O. Wilson”, foi publicada pela Folha de S.Paulo, em 27/6/2012).

Cientista, divulgador ou…

Não é de estranhar, portanto, que a grande maioria dos leitores conheça Dawkins apenas e tão somente como autor de livros de divulgação. Todavia, ainda que essas obras tenham feito a sua fama e a sua fortuna, elas não o tornam um “cientista” – talvez o termo que mais comumente aparece ao lado do seu nome. Eis um comentário a respeito disso (tradução livre):

“Você gostaria de falar sobre Dawkins?”, ele continua – e quando digo que sim, ele ri. “Eu hesito em fazer isso porque ele é um cara tão popular, mas Dawkins não é um cientista. Ele é um escritor de ciência e ele não tem participado de pesquisas nem tem publicado em periódicos revisados por pares há muito tempo. Em outras palavras, não há nenhuma controvérsia Wilson versus Dawkins; a controvérsia é Wilson versus… bem, eu poderia dar a você uma bela lista de outros cientistas que estão fazendo pesquisas revisadas por pares.”

O comentário foi extraído de uma matéria na qual a autora relata o encontro que teve com E. O. Wilson – ver matéria “The Saturday interview: Harvard biologist Edward Wilson”, de Suzanna Rustin, publicada no The Guardian, em 18/8/2012.

… guru pós-moderno?

Com o sucesso, vieram as viagens, as palestras e os debates. Tornou-se um polemista bem-sucedido, angariando ainda mais atenção. Embora a sua área de interesse fosse originalmente o estudo do comportamento animal, Dawkins rapidamente ampliou o seu leque de atuação. Hoje ele opina com desenvoltura e desembaraço a respeito de um amplo e variado elenco de questões, muitas das quais são de fácil apelo popular (ver, por exemplo, a matéria “Harry Potter fails to cast spell over Professor Richard Dawkins”, de Martin Beckford & Urmee Khan, publicada no The Telegraph, em 24/10/2008).

Um de seus alvos prediletos é o “fundamentalismo religioso”, em especial o de origem muçulmana. Há quem o classifique de preconceituoso ou oportunista, mas há também quem chame a atenção para o seu despreparado (ver, por exemplo, a matéria “Atheists Richard Dawkins, Christopher Hitchens and Sam Harris face Islamophobia backlash”, de Jerome Taylor, publicada no The Independent, em 12/4/2013).

O pior de tudo isso é que Dawkins está longe de ser um exemplo de divulgador ou de intelectual que interage e aprende com os seus interlocutores. Ele apenas pontifica. (Posso estar exagerando, mas sugiro que o leitor contrariado procure ler alguma das resenhas ou algum dos inúmeros prefácios de livros que ele andou escrevendo nos últimos anos.) Agindo desse jeito, talvez fosse mais indicado passar a chamá-lo de guru pós-moderno, mais ou menos nos moldes daquele renomado escritor brasileiro que recentemente se recusou a dividir os holofotes na Feira do Livro de Frankfurt com simples mortais (ver, neste Observatório, “Polêmica com Paulo Coelho desvia o público do essencial”).

Referências citadas

** COSTA, F. A. P. L. 2011. George Williams e a mãe natureza. Ciência Hoje 282: 70-2. (Para uma versão mais detalhada, ver artigo “A Mãe Natureza é uma bruxa velha malvada” [~125 kb], publicado na revista eletrônica Simbio-Logias.)

** DAWKINS, R. & KREBS, J. R. 1979. Arms races between and within species. Proceedings of the Royal Society of London, B 205: 489-511.

** EHRLICH, P. R. 1993. O mecanismo da natureza: o mundo vivo à nossa volta e como funciona. Rio de Janeiro, Campus.

** GARRETT, L. 1995. A próxima peste: as novas doenças de um mundo em desequilíbrio. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

** SINGH, S. 2006. Big Bang. Rio de Janeiro, Record.

** WEINER, J. 1995. O bico do tentilhão: uma história da evolução no nosso tempo. Rio de Janeiro, Rocco.

** WRIGHT, R. 1996. O animal moral – Porque somos como somos: a nova ciência da psicologia evolucionista. Rio de Janeiro, Campus.

** WILLIAMS, G. C. 1998. O brilho do peixe-pônei e outras pistas para se entender o plano e o objetivo da natureza. Rio de Janeiro, Rocco.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)