Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mandela, Hannah Arendt e o perdão

Nelson Mandela foi um dos mais importantes personagens do século XX por suas grandes virtudes pessoais e pelo exemplo que deixa ao mundo de como um líder determinado é capaz de superar enormes obstáculos, moldar o processo histórico-político e obter mudanças sociais que parecem “realisticamente” impossíveis à maioria absoluta das pessoas. Em síntese, Mandela logrou, pela sua atuação, tornar efetiva a visão de uma renovada África do Sul pós-apartheid. Daí a sua grandeza.

Estive com ele em 2002, em companhia do presidente Fernando Henrique Cardoso, durante a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+10), que se realizou em Johanesburgo.

Poucas pessoas que eu conheci em minha vida me impressionaram tanto no contato pessoal. Mandela transmitia uma rara, imantadora e positiva aura.

Essa aura, que lastreava a especificidade de sua autoridade provinha do fato de que ele era dotado de algumas características de personalidade que podem ser importantes para qualquer pessoa, mas são indispensáveis para o bom exercício de funções públicas.

Admiração imutável

André Comte-Sponville, em seu livro “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, examina e discorre sobre 18 qualidades humanas. Ele as escolheu a partir de uma lista inicial de 30 e da definição aristotélica de que “a virtude é uma disposição adquirida de fazer o bem”.

Só Nelson Mandela, com a autoridade do seu exemplo, tinha condição de valer-se da reconciliação pela verdade factual e pelo perdão para criar um novo ponto de partida apto a reconstruir a África do Sul pós – apartheid. Ele agiu para o bem de seu país

Minha impressão, por conta desse rápido contato pessoal, é a de que Mandela possuía a maior parte delas. Justiça, compaixão, temperança, simplicidade, tolerância, boa fé seguramente fizeram parte da sua maneira de ser. No contexto deste artigo vou concentrar-me, no entanto, em uma delas: a coragem, que é uma virtude que sustenta as demais e que é uma “virtude forte”, como dizia Bobbio, indispensável na vida pública.

Montesquieu define a coragem como o sentimento de suas próprias forças. Provém de uma firmeza de espírito que permite enfrentar os perigos e as provações. Quando aliada à generosidade e ao otimismo em relação ao futuro e voltada para o bem, como foi o caso da trajetória de Mandela, ela se torna exemplar no alcance geral do seu significado.

Ele a demonstrou desde que, em 1942, com 23 anos, se engajou na luta contra o odioso sistema do apartheid, na África do Sul, ao se filiar ao Congresso Nacional Africano, do qual se tornaria o maior líder.

Mandela comandou centenas de atos pacíficos de protesto e de desafio às leis segregacionistas. Sua banca de direito Mandela e Tambo, em sociedade com Oliver Tambo, provia a defesa de militantes do movimento que eram presos e processados pelo governo.

Em 1956, o próprio Mandela foi preso pela primeira vez, fato que se repetiu em diversas outras ocasiões, até que em 1963 foi condenado à prisão perpétua. Ele passou 27 anos encarcerado, 18 dos quais na tristemente célebre Robben Island, muitos deles em confinamento solitário, recebendo os piores tipos de tratamento imagináveis, que lhe causaram inúmeras enfermidades, inclusive uma tuberculose.

Durante todo esse período, o caráter de Mandela não esmoreceu, apesar de tantas provações. Ele se aprofundou nos estudos de direito, manteve a liderança do CNA e tomou inúmeras decisões importantes para o desenvolvimento da luta contra o apartheid.

Foi esse exemplo de coragem e determinação que fez com que Hannah Arendt se incluísse entre os muitos admiradores de Mandela, de quem ela primeiro teve notícia por meio de seu amigo Dan Jacobson, um escritor judeu sul-africano, no início dos anos 1960.

Hannah Arendt defendeu que Mandela recebesse o Prêmio Internacional da Fundação Balzan, dedicado à promoção das mais meritórias iniciativas em favor da humanidade no ano de 1963. Ela fazia parte da comissão responsável pela indicação de candidatos, e seu amigo Karl Jaspers era membro do júri a quem cabia a decisão final.

No notável livro que contém a correspondência entre esses dois luminosos intelectuais do século XX, em diversas ocasiões Hannah Arendt argumentava sobre a importância de dar mais visibilidade à questão da integração das raças como forma de propagação da defesa dos direitos humanos, e como a premiação de Mandela, na época sendo julgado por sabotagem ao regime sul-africano, poderia ser importante nesse sentido. O prêmio acabaria sendo dado ao papa João XXIII, mas a admiração de Hannah Arendt por Nelson Mandela não diminuiu.

Líder único

É interessante observar que, muitos anos depois da morte de Hannah Arendt, alguns de seus importantes conceitos (entre eles, a verdade factual como a verdade da política; o poder redentor da narrativa na lida com o sofrimento; o perdão como a faculdade de lidar com a irreversibilidade do que foi feito) estiveram presentes no encaminhamento da Justiça de Transição na África do Sul.

Justiça de Transição como o modo pelo qual uma sociedade lida com um passado de repressão assumiu na África do Sul, por inspiração de Mandela, o caminho de uma Comissão da Verdade e Reconciliação. Esta abriu espaço público para o testemunho das vítimas do apartheid, colocou-as num diálogo direto com os seus perpetradores, apontou para a compreensão e não para a vingança, para a reparação e não para a retaliação. Afirmou a indispensabilidade da verdade factual e promoveu, pelo perdão, a reconciliação, criando condições para que ela ocorresse entre brancos e negros num país previamente separado, durante décadas, pela hostilidade e pelo ódio.

A Comissão da Verdade e de Reconciliação da África do Sul permitiu que, pela primeira vez na história, o exercício do perdão como a faculdade de lidar com a irreversibilidade do que foi feito, se tornasse um princípio-guia de um Estado Sul-Africano renovado e redemocratizado. É o que aponta Elizabeth Young-Bruehl em seu “Why Arendt Matters”.

Só Nelson Mandela, com a autoridade do seu exemplo, tinha condição de valer-se da reconciliação pela verdade factual, pelo poder redentor da narrativa e pelo perdão para criar um novo ponto de partida apto a reconstruir a África do Sul pós-apartheid. Ele agiu, assim, com suas qualidades e virtudes, como um estadista voltado para o bem de seu país, empenhado em manter de pé e unificada a África do Sul.

O mundo perde, com a morte de Nelson Mandela, um líder admirável e único na sua grandeza.

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Celso Lafer foi ministro das Relações Exteriores nos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e atualmente é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Fapesp