Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No ano das biografias, uma está estourando: não é autorizada

Das milhares de figuras humanas que saltam das páginas do Velho e do Novo Testamento, a que desperta maior curiosidade e fascinação é a do Nazareno, Ioshua, conhecido pelos romanos como Iesu, justamente porque é apresentado como Filho de Deus.

Abrahão, o patriarca, o líder Moisés e as dezenas de profetas, maiores e menores, ouviam as advertências divinas, levavam-nas aos governantes e ao povo, mas a nenhum deles atribuíram-se poderes sobrenaturais (mesmo Elias levado para o céu em carruagem de fogo).

A busca do Jesus Histórico é quase tão antiga quanto os relatos sobre o Jesus Teológico. Logo no início do seu evangelho (o penúltimo a ser escrito), num pequeno prefácio – quase um lead – Lucas atesta que obteve as informações de testemunhas que presenciaram os fatos e assume que procurou informar-se minuciosamente de tudo, desde o princípio (Lucas, 1;1-4).

Reza Aslan, historiador americano, especialista em ciência das religiões, nascido no Irã e formado em Harvard, desmonta o relato biográfico de Lucas e dos demais evangelistas, também a carta de Tiago, irmão e sucessor de Jesus, e as 14 epístolas do apóstolo Paulo num livro-reportagem de 300 páginas apaixonantes e que está causando furor nos Estados Unidos.

Historiador e biógrafo

Zelota, a vida e a época de Jesus de Nazaré (recém-lançado no Brasil pela Editora Zahar) está há semanas na lista dos best-sellers dos EUA. Parte deste furor foi causado pela repercussão da entrevista em que a apresentadora Laureen Green, da hiperreacionária Fox News, tentou desqualificar o extraordinário trabalho investigativo de Aslan só pelo fato de que sua família é muçulmana secular (ver aqui).

Mme. Green sequer leu o release da editora americana, Random House, ou um resumo da obra. Não lhe disseram que Zelota é uma obra ostensivamente filossemita, nacionalista e “sionista”, violentamente antirromana, admirável recuperação do messianismo judaico na Terra Santa que os primeiros cristãos preferiram ignorar para que Roma não descarregasse sobre eles o mesmo ódio que a levou a arrasar Jerusalém e massacrar a maior parte dos seus habitantes como castigo pelo levante do ano 70 d.C.

A reconstrução histórica magistralmente narrada por Aslan nada tem de iconoclasta. Não quer destruir a fé, oferece pontes, tenta somar. Seu objetivo não é político, ideológico ou religioso. Não está a serviço de nenhuma seita ou facção, a não ser a daqueles que se engajaram na tarefa de desencavar os fatos.

Aslan parte do pressuposto que o Jesus Bíblico existe há dois mil anos e jamais será abandonado. Sua paixão está dirigida à forma de buscar um relato alternativo, complementar, humano. Portanto, humanista. É o jornalista que oferece ao leitor duas versões e deixa que ele próprio faça as escolhas.

Aos 41 anos, com um completo domínio das Escrituras Sagradas e do formidável acervo de pesquisas acumulados desde o Iluminismo (um dos primeiros pesquisadores modernos foi o alemão Reimarus, 1694-1768), suas fontes são as mais atualizadas (a bibliografia é impressionante).

Não revela novos documentos nem anuncia descobertas arqueológicas, tudo o que descreve é conhecido. Sua maestria está na capacidade de articular, comparar, adensar e, sobretudo, despojar-se de preconceitos. E justamente por isso, um dos seus colaboradores mais presentes é o historiador judeu, depois cidadão romano, Flávius Josephus (37 d.C.-100 d.C.), que chefiou uma das revoltas dos patriotas judeus na Galileia, escapou do cerco da fortaleza de Massada sem suicidar-se e depois foi perdoado pelo futuro imperador Vespasiano.

Testemunha privilegiada, observador atento e descompromissado, Josephus teve contra ele o fato de buscar a isenção: os romanos o viam como judeu, os judeus o consideravam perjuro, simpático ao cristianismo, os cristãos mantiveram-no sob suspeição porque continuou judeu observante.

Reza Aslan não teve problemas em resgatar Josephus do ostracismo porque como historiador e biógrafo está comprometido unicamente com a busca da verdade.

Alvo seletivo

Buscar a verdade em matéria religiosa é complicado. Mesmo na esfera racional da ciência das religiões. A edição brasileira de “Zelota” está sendo bem recebida. Mas a recepção é visivelmente cautelosa. Nossa imprensa não se sente à vontade em ambientes secularistas. Em matéria de biografias de santos, prefere as autorizadas.

Há exatos 40 anos, este observador foi malhado furiosamente pelo pensador Gustavo Corção (1896-1978) por conta de um texto sobre Jesus histórico publicado na edição natalina do Jornal do Brasil, de autoria de Albert Schweitzer (1875-1965, teólogo, músico, médico e humanista franco-alemão). Corção não teve coragem de investir contra Schweitzer, Nobel da Paz, preferiu investir contra o jornalista que teve a ousadia de publicar um estudo psicológico do Nazareno.