Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O serviço público de televisão por radiodifusão

A Conferência Nacional de Comunicação, a ser realizada em dezembro deste ano, será um evento que poderá entrar para a história brasileira, pois será o palco para o debate público em torno do novo marco regulatório das comunicações.

Entendo que uma das questões centrais a ser enfrentada refere-se à noção de serviço público de televisão por radiodifusão e aplicação de seu regime jurídico em relação às TVs privadas, públicas e estatais. O modelo legislativo de televisão por radiodifusão, contemplado na Lei nº 4.117/62, contraria a Constituição de 1988 e está defasado sob a perspectiva tecnológica, vez que à época vigorava o padrão analógico. É senso comum afirmar que a televisão por radiodifusão é um serviço público, sem maiores explicações.

Primeiro, a televisão por radiodifusão é aquela recebida gratuitamente pelo público em geral e cuja transmissão requer a utilização das freqüências do espaço eletromagnético, consideradas um bem público. Segundo, o modelo clássico de serviço público de televisão está estruturado com base na universalidade do serviço, na produção e na distribuição de conteúdo audiovisual homogêneo, na gratuidade e na ampla audiência. Afinal, o que é o serviço público de televisão?

Protagonismo no audiovisual

O serviço público de televisão é a garantia constitucional para a realização de diversos direitos fundamentais. Em outras palavras, o serviço público não é uma finalidade em si, mas um instrumento previsto Constituição a realização dos direitos fundamentais (exemplos: liberdade de expressão e comunicação social, educação, cultura, informação etc). Tal garantia deve ser respeitada e efetivada pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Infelizmente, até o momento, o legislador não atualizou a legislação conforme as exigências constitucionais, pois a lei que rege o setor é do ano de 1962 e, como referido acima, está totalmente ultrapassada juridicamente e tecnicamente.

Daí, a necessidade de uma nova lei geral para as comunicações brasileiras. A noção clássica de serviço público está associada ao Estado. Este é o titular da atividade qualificada pela Constituição e pela legislação como de interesse público. O serviço é público não porque pertence ao Estado, mas porque o público é o destinatário das prestações. A titularidade é atribuída ao Estado em atendimento às necessidades do público, e não para a realização dos interesses estatais. Há o dever-poder de a entidade estatal assumir o serviço e prestá-lo, diretamente, ou, indiretamente, sob o regime de concessão, permissão ou autorização.

Em termos teóricos, o serviço público é um mecanismo de regulação do mercado de televisão. Sua função é a oferecer respostas às falhas do mercado, com o objetivo de garantir o seu equilíbrio. Trata-se de um instituto de correção dos erros dos agentes econômicos e externalidades negativas por eles provocas. Outra missão relevante do serviço público é o protagonismo no setor audiovisual, oferecendo uma programação de qualidade, inovadora e plural, com maior vinculação em relação, principalmente, às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Como um excelente exemplo de serviço público, há a TV Cultura de São Paulo, que cumpre este protagonismo televisivo, oferecendo novas e diferentes alternativas para o público telespectador.

Diferenciação de regimes jurídicos

Defendo que o regime de serviço público não pode ser aplicado uniformemente em relação às televisões privadas, públicas e estatais. No Brasil, há grande confusão conceitual quanto às TVs estatais e públicas. No entanto, a Constituição não deixa dúvidas quanto à necessidade de distinção dos dois conceitos, na medida em que contempla o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privados, públicos e estatais. As televisões estatais são de titularidade estatal. Sua finalidade é a de oferecer comunicação institucional dos poderes públicos, mediante a divulgação de atos e fatos de interesse público dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O foco de sua atuação consiste na prestação do serviço público de difusão de informações para o público. Exemplos: TV Justiça, TV Câmara, TV Senado.

A TV Brasil, muito embora seja rotulada como uma modalidade de TV Pública, é uma TV estatal, eis que criada e mantida pela União. As televisões públicas são de titularidade da sociedade civil. Em razão disto não podem estar vinculadas ao setor estatal, mas sim, ao público não-estatal. Neste caso, podem ser exploradas por organizações sociais ou associações civis, algo ainda não previsto na legislação em vigor. Elas representam o instrumento para a realização concreta do direito do público (cidadãos em geral) em prestar diretamente o serviço de tevê por radiodifusão.

É fundamental que a nova lei discipline a questão da titularidade do serviço de televisão por radiodifusão. Isto implica o reconhecimento de serviços públicos de televisão exclusivos do Estado (atividade tipicamente estatal como é o caso das tevês legislativas) e serviços públicos de televisão não exclusivos (ex.: TVs educativas e culturais). É importantíssima a diferenciação dos regimes jurídicos conforme a natureza da emissora, particularmente criando-se um novo marco regulatório que contemple as diferenças entre as TVs estatais e públicas em face das TVs comerciais, sob pena de distorções no funcionamento do sistema de radiodifusão e prejuízo ao Estado Democrático de Direito.

Universalização e obrigatoriedade do serviço

A idéia-chave regulatória é a compreensão dos diferentes regimes de pluralismo. Embora a digitalização implique a revisão dos conceitos e dos paradigmas regulatórios, ela não pode representar uma igualdade de regimes entre a televisão estatal e pública e a televisão comercial. Em se tratando de radiodifusores estatais e públicos, deve ser maior a carga de pluralismo em sua estruturação interna e na programação audiovisual oferecida ao público. Por outro lado, em se tratando de radiodifusores comerciais tal exigência deve ter menor intensidade, eis que eles são mais constrangidos por necessidades de audiência.

É da essência do serviço público a universalização e a obrigatoriedade de sua prestação para o público em geral. Por conseqüência, há o direito do público em acessar os serviços de televisão por radiodifusão, independentemente de sua natureza, privada, público ou estatal. Então, faz-se necessário que os canais públicos e universitários contemplados na Lei 8.977, de janeiro de 1995, sejam estendidos para o sistema de radiodifusão aberto. Ademais, os canais legislativos devem ter seu espaço dentro do sistema de radiodifusão aberto.

Autorização administrativa

Outra conclusão resultante da afirmação do referido direito é a formulação e a implementação de medidas de fomento do acesso dos cidadãos-usuários aos serviços de televisão digital por radiodifusão. Como é um serviço público, então deve ser garantido o acesso universal ao Sistema Brasileiro de Televisão Digital. Quanto às TVs estatais e públicas, muito embora lhes seja aplicado o regime de serviço público, não devem ser aplicadas exigências absolutas em termos de audiência. É incabível comparar tais modalidades de TV com o modelo das TVs comerciais. A finalidade das emissoras privadas é a realização de lucros que servem ao custeio de suas atividades e a repartição entre seus sócios. A audiência é um meio para a realização de seus lucros, mediante a venda de publicidade mercantil. Por outro lado, para as TVs estatais e públicas a audiência representa o público de cidadãos destinatários da programação audiovisual.

Em relação às televisões privadas, sustento simplesmente o afastamento do regime da concessão de serviço público. Em um Estado moderno, não tem mais cabimento tal figura jurídica que é incompatível com a liberdade de comunicação social garantida pela Constituição às emissoras comerciais. Em substituição, defendo a adoção do regime da autorização administrativa. A partir do momento em que houver a compreensão da missão do serviço público de televisão e a sua magnitude para o Brasil e para os brasileiros, a democracia criará mais sólidas raízes em nosso território.

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Advogado e doutor em Direito pela USP, autor do livro TV Digital e Comunicação Social