Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Se ela for mal, buscaremos outro Pinochet!’

Enquanto os chilenos se dirigiam às urnas, no domingo (15/12), o empresário Sven von Appen, de origem alemã e dono do poderoso grupo Ultramar, concedeu uma entrevista à CNN Chile, na qual ameaçou abertamente Michelle Bachelet e a democracia no país andino.

Comentando o primeiro governo de Bachelet (2006-2010), o empresário disparou: “Bem, ela não fez muita coisa, comparada com os que estiveram antes dela, especialmente Pinochet… Pinochet foi um homem…[abre os braços, como quem diz “extraordinário”] Se isso acontecer [querendo dizer: se Bachelet não corresponder às expectativas], buscaremos outro Pinochet!” (ver aqui).

As reações à provocação de Von Appen foram rápidas e contundentes: Carol Cariola, deputada recém-eleita, teclou no Twitter: “Empresario pesquero Sven von Appen: Ante eventual mal manejo económico de Bachelet ‘buscamos otro Pinochet’/ Esto es INACEPTABLE”. A jornalista Carmen Hermosilla, célebre na imprensa digital chilena, alertou: “Von Appen es viejo rico que dicen su verdad con desparpajo. Senil? De Pinochet dijeron lo mismo para ahorrarle un juicio”.

Contudo, poucas horas depois de ir ao ar, o vídeo desapareceu do site da CNN Chile; e dos comandos partidários, especialmente da Nova Maioria, nenhuma reação.

“Senil” ou golpista?

Dirigido pelos irmãos Wolf e Sven von Appen, a holding Ultramar é emblema das novas fortunas engendradas pela política de privatizações da era Pinochet, como também pelas licitações promovidas durante os anos 1990, pelos governos da ex-Concertación, hoje Nova Maioria, de centro-esquerda. Mantendo denso entrecruzamento de participações com duas outras empresas chilenas, a Ultramar comanda o cartel dos negócios portuário e de agenciamento marítimo no país, mas como sócia da mina de carvão Isla Riesco e da termoelétrica Guacolda também está presente nos setores de mineração e energia.

Não é a primeira vez que Sven von Appen causa indignação na opinião pública chilena: em 15 de maio do ano em curso, conversando com o jornal La Segunda (ver aqui), do empresário Alvaro Saieh, sobre o momento político no Chile, Von Appen elogiou Sebastián Piñera e Pinochet. “Este ministro [da Fazenda, Felipe Larraín], este presidente [Piñera] e outros tantos criaram o presente avanço do Chile, bastante singular, avanço que já tivemos anteriormente, com um presidente muito bom [Pinochet].” E completou, saindo-se com a seguinte pérola: “Aumentou tanto o apetite dos chilenos que não conseguem parar. Isso vai engordá-los e acomodá-los e, a meu ver, a única solução é uma crise internacional ou chilena, de caráter financeiro… para que o chileno caia na real…”.

Ao ser questionado, como seria originada a crise apontada como solução, advertiu, sem papas na língua, uma saída golpista: “Ganhando a esquerda comunista, provocará a instabilidade econômica”.

Traduzindo: apesar das gritantes desigualdades sociais provocadas pelo “modelo” neoliberal pinochetista que sobrevive no Chile, Von Appen insurge-se até mesmo contra a incipiente mobilidade social e as migalhas atiradas aos pobres, sob forma de cartões de crédito e endividamento, atitude que deixou transparecer não apenas seu viés selvagem do capitalista inescrupuloso, mas também o olhar mesquinho e racista sobre o chileno humilde.

O rebocador das atrocidades

Para apagar o incêndio de indignação que tomou conta dos meios de comunicação chilenos, em carta enviada ao La Segunda, esposa e filhos de Von Appen apressaram-se em atribuir ao patricarca sintomas de desequilíbrio que “nos obliga a compartir algo que considerábamos propio de la intimidad de nuestra família… Sucede que desde hace algún tiempo nuestro padre sufre de una enfermedad degenerativa propia de la vejez contra la cual lucha día a día”,justificou a família, em atitude que devolveu aos chilenos a lembrança da declaração de “incapacidade” conferida a Pinochet em 2003, para garantir sua impunidade.

Como a maioria dos grandes empresários chilenos, Von Appen é pinochetista convicto e ostenta um currículo manchado pelas atrocidades da ditadura Pinochet: no início do novo milênio, adquiriu da empresa de navegação Kenricko rebocador Kiwi, utilizado durante a ditadura militar pela Marinha chilena na baía do porto de San Antonio como plataforma para lançar ao mar 400 presos políticos assassinados pela DINA (a policía política pinochetista), caso ainda investigado pela Justiça chilena. Diante das denúncias dos movimentos de direitos humanos, a Ultramar de Von Appen dedidiu mudar o nome do rebocador para El Brujo (sic)e transferí-lo para suas operações em águas peruanas.

Espião nazista

Wolf e Sven von Appen são filhos de Julius von Appen, fundador do grupo Ultramar, mas, antes disso, espião nazista, preso e extraditado pelo Chile em 1945.

Conforme pesquisa realizada pela historiadora María Soledad de la Cerda em seu livro Chile y los Hombres del Tercer Reich (Ed. Sudamericana chilena, 2000), Julius von Appen chegou ao Chile em 1937, em missão assaz diferente da descrita no portal do Centro de Empresas Familiares Albert von Appen da Universidade Adolfo Ibañez, que o apresenta como respeitável capitão da marinha mercante alemã, que desembarcara no país andino com esposa e dois filhos em busca de um novo futuro.

Com o nom de guerre “Apfel” (maçã), Von Appen liderou no Chile uma rede de espiões de Hitler que não apenas observavam o movimento marítimo em portos chilenos, mas cuja missão incluía ações de sabotagem ao longo da costa do Pacífico. A identidade de “maçã” – Julio Alberto von Appen Oestman – acabou descoberta pelo Departamento 50, a então unidade de contraespionagem chilena, fortemente pressionada pelos Estados Unidos, por sua vez informados de que Von Appen tinha por encomenda de Berlim explodir fábricas, barcos e também o canal do Panamá.

Detido pela primeira vez em 1942, já em liberdade Julius von Appen instalou-se numa pequena granja em Limache, como criador de frangos. Preso novamente em 1945, foi internado em um campo de prisioneiros de guerra nos Estados Unidos, onde ganhou a liberdade em 1948, retornando ao Chile.

Em entrevista concedida em 8 de abril de 1948 ao jornal La Hora, o ex-espião justificou sem o menor constrangimento as razões de seu envolvimento na rede de espionagem nazista: “Por um motivo muito simples. A Hamburgo American Line, da qual eu era empregado, me designou inspetor marítimo, com base neste país. Fui e sou militante ativo do partido nazista. Não o nego, do mesmo modo como o senhor tampouco ocultaria sua filiação política. Mas havia uma consideração mais forte, eu sou alemão e me sinto alemão em qualquer ponto do globo terrestre (…). Sim, sempre mantive contato com Berlim e meu partido. No Chile, criei uma filial; com ela deveria difundir onde fosse o novo espírito germânico. Era meu dever (…).”

******

Frederico Füllgraf é mestre em Comunicação Social pela FUB – Universidade Livre de Berlim e ex-aluno da DFFB – Academia Alemã de Cinema e Televisão, também em Berlim. É escritor (A bomba ‘pacífica’- o Brasil e outros cenários da corrida nuclear, Brasiliense, 1988), roteirista e diretor de cinema, e desde 1985 atua como produtor associado da Rádio e TV Pública da Alemanha (ARD), atualmente baseado em Santiago do Chile