O rádio no Brasil surge com caráter educativo e cultural e sem interferência do poder executivo ou de bases político-religiosas. Porém, em quase 90 anos de história, sua trajetória aponta para seu uso de maneira distorcida ao que foi idealizado. O rádio hoje no Brasil ou está nas mãos de políticos ou está no altar. E, nesta queda de braço com o poder, os ideais educativos de seu fundador foram massacrados pelos interesses de governantes, legisladores ou da prática religiosa.
Entre outros feitos importantes, o século 20 foi o berço do surgimento do rádio. Neste período, o mundo descobriu o poder da radiodifusão com Orson Welles1 e com Adolf Hitler2. O rádio teve um papel fundamental na história política do século, transmitiu mais que notícias, ideologias, medos e valores. Ele elegeu e sustentou presidentes, e ainda, serviu para propagar ideologias religiosas.
No Brasil, o rádio surge através de Roquette-Pinto3, ‘pai do rádio brasileiro’, citado por vários autores como o grande idealizador deste veículo de comunicação, principalmente quando, em 1922, percebeu a importância do rádio como a forma de comunicação popular e democracia cultural em nosso país.
Ele foi o primeiro a definir uma ‘alma’ para o rádio no Brasil, tendo como princípio a função de educar, de transmitir conhecimentos e lições para os ouvintes, diminuindo assim, o déficit social que até os dias de hoje apresenta seus graves efeitos (FIGUEIREDO).
Censura e suspensão de licenças
Porém, para Roldão (2006), desde a primeira transmissão oficial de radiodifusão, no Brasil, em 1922, nunca houve uma política democrática de concessões, nem uma legislação que realmente as controlasse a partir do interesse público.
Até a promulgação da Constituição de 1988, a legislação que regulamentava as concessões de rádio e televisão atribuía ao presidente da República poder absoluto. A Constituição Brasileira promulgada em 1988, ao definir que as concessões e renovações devem passar pelo Congresso, mudou apenas formalmente essa política (ROLDÃO, 2006, p. 2).
Para Ferreira (2007), aquela que é considerada por muitos a primeira experiência radiofônica no Brasil foi marcada por um discurso político: em setembro de 1922, durante a exposição que comemorava o centenário da independência do Brasil, no Rio de Janeiro, Epitácio Pessoa tornou-se o primeiro presidente brasileiro a falar no rádio.
Outros políticos também encontraram no rádio um importante aliado: Juscelino Kubitschek, Aluisio Alves, Carlos Lacerda, Leonel Brizola.
Já nas décadas de 1960 e 1970, sob a ditadura, os militares utilizaram a censura e a suspensão de licenças como recursos para impedir que grupos contrários ao regime de exceção mantivessem controle sobre o rádio e através dele manifestassem idéias contrárias ao autoritarismo vigente (FERREIRA, 2007, p. 2).
1.028 concessões em um mandato
A história mostra que o rádio no Brasil foi utilizado como forma de barganha por muitos políticos. ‘É a partir do governo Figueiredo que as concessões passam a ser empregadas como moeda política em Brasília, nas negociações entre o Executivo e o Legislativo’ (Moreira, 1998, p. 86).
Entre outubro de 84 e março de 85 – período em que acontece a batalha da eleição indireta para a Presidência, com Tancredo Neves representando o PMDB e Paulo Maluf o PDS – 140 concessões de rádio e TV foram distribuídas pelo Ministério das Comunicações. No total, o general Figueiredo, em seis anos de governo, liberou 634 concessões de rádio e televisão. Intensificava-se, a partir daquela fase, uma movimentação diferente entre concessionários e poder concedente (MOREIRA, 1998, p. 87).
Ao assumir a Presidência da República, José Sarney não só mantém como amplia a prática perniciosa de trocar estações de rádio e TV por votos no Congresso Nacional.
No total, a administração Sarney distribuiu 1.028 concessões de emissoras de rádio (AM e FM) e de televisão – 30,9% dos canais existentes na época. Em apenas um mandato, José Sarney assinou um número de concessões superado apenas pela soma das permissões autorizadas por todos os presidentes brasileiros entre 1934 e 1979: ao longo de 45 anos haviam sido outorgados 1.483 canais de rádio e TV, ou 44,5% das emissoras que estavam no ar em 1989 (Ibid., p. 94).
90% da mídia é controlada por 15 grupos
Também o governo FHC é acusado de fazer uso político da distribuição de emissoras.
Entre 1995 e 1996, por exemplo, durante a discussão da emenda que possibilitaria a reeleição, ‘o governo concedeu 1.848 licenças de repetidoras de TVs, das quais 268 foram entregues a entidades ou empresas controladas por 87 políticos’, conforme atesta documento elaborado pelo pesquisador Israel Bayma. Nos últimos três meses do segundo mandato (2002), de forma apressada, o governo aprovou 291 concessões, licenças e permissões de emissoras de radiodifusão, sendo 89 processos autorizados em uma única sessão no Senado. Constam desse total 229 concessões de rádios comunitárias e 16 concessões de TVs Educativas, das quais nove foram destinadas a Minas Gerais (estado de origem do ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, que as autorizou em abril, antes, portanto, de se descompatibilizar do cargo). Impedido de distribuir concessões comerciais, a partir da lei instituída em seu próprio governo, Fernando Henrique Cardoso investe nos canais educativos e comunitários, cujos contratos estão livres do processo de licitação (FERREIRA, 2007, p. 11).
De acordo com reportagem publicada na revista CartaCapital (1998, p.28 apud ROLDÃO, 2006, p.2), ’96 parlamentares (83 deputados federais e 13 senadores) tinham, em março de 1995, concessões de rádio e TV’; sem contar as concessões em nome de familiares de nomes famosos da política brasileira, como Antônio Carlos Magalhães4 e José Sarney5, entre tantos outros. Segundo reportagem da revista Sem Fronteiras (1997, p.16, apud ROLDÃO, 2006, p. 3), 90% da mídia nacional é controlada por 15 grupos e famílias.
Há muito por fazer
Lima (2008) classifica a utilização das concessões de radiodifusão como moeda de barganha política e coronelismo eletrônico. ‘É um fenômeno do Brasil urbano da segunda metade do século XX, que resulta, dentre outras razões, da opção que a União fez, ainda na década de 30, pelo modelo de outorga, a empresas privadas, da exploração dos serviços públicos de rádio e TV’ (LIMA, 2008, p. 27).
Para Roldão (2006), fica evidente que a política de radiodifusão brasileira, fruto de um ‘jogo de interesses’, nunca valorizou a discussão sobre as emissoras de rádio e TV educativas.
Mesmo entre as emissoras educativas a política de concessões no Brasil é questionável. Moreira (1998, p. 144) conta, por exemplo, que na apuração da tragédia do Palace II surgiram informações sobre o patrimônio do empresário Sérgio Naya. Entre muitos outros bens, o empresário mantinha há anos um esquema radiofônico em várias cidades mineiras. ‘Em 1998, pelo menos 13 emissoras estavam no ar em campanha permanente para o deputado – a maioria conseguida como concessões educativas por intermédio da Fundação Serafim Naya de Pesquisas Médico-Hospitalares’ (ROLDÃO, 2006, p. 5).
O Ministério da Educação reativou e ampliou, a partir de 2004, o projeto Rede de Comunicadores pela Educação. Roldão (2006) explica que a equipe responsável já percorreu 15 capitais do Nordeste, Sudeste e Sul do país, com oficinas para quase 500 radialistas, instruindo a fiscalização de projetos sociais do governo federal. No entanto, as iniciativas que vêm sendo empreendidas, apesar de bem-sucedidas e com resultados positivos, ainda não contemplam a realidade sócio-econômico-cultural do Brasil. Ainda há muito por fazer.
Promessa desmentida
Apesar destas experiências educativas, uma reportagem publicada pela Folha de S.Paulo, em 18 de junho de 2006 e assinada por Elvira Lobato, afirma que
‘o governo Lula reproduziu uma prática dos que o antecederam e distribuiu pelo menos sete concessões de TV e 27 rádios educativas a fundações ligadas a políticos. Também foi generoso com igrejas: destinou pelo menos uma emissora de TV e dez rádios educativas a fundações ligadas a organizações religiosas. Esse fenômeno confirma a afirmação de funcionários graduados do Ministério das Comunicações de que, no Brasil, a radiodifusão `ou é altar ou é palanque´’ (LOBATO, 2006).
A reportagem divulga ainda outros dados que dizem respeito às emissoras educativas.
Em três anos e meio de governo, Lula aprovou 110 emissoras educativas, sendo 29 televisões e 81 rádios. Levando em conta somente as concessões a políticos, significa que ao menos uma em cada três rádios foi parar, diretamente ou indiretamente, nas mãos deles. Fernando Henrique Cardoso autorizou 239 rádios FM e 118 TVs educativas em oito anos. No final de seu segundo mandato, a filha, em levantamento semelhante, comprovou que pelo menos 13 fundações ligadas a deputados federais receberam TVs, desmentindo a promessa que ele havia feito de que colocaria um ponto final no uso político das concessões de radiodifusão (Ibid).
‘A escola dos que não têm escola’
O site do Ministério das Comunicações é bem claro ao declarar quem tem preferência para executar a radiodifusão educativa no Brasil:
‘São competentes para executar os serviços de radiodifusão com fins exclusivamente educativos: com preferência estabelecida em lei, a União Federal, os Estados e o Distrito Federal, os Municípios e as universidades brasileiras, públicas ou particulares; sem nenhum tipo de preferência, as fundações particulares com finalidades educativas’ (MC, 2009).
Portanto, pelas leis federais, as rádios educativas deverão permanecer nas mãos dos políticos e, desta forma, estas mesmas leis depõem contra a democratização da comunicação no Brasil.
Na mesma entrevista à Folha (2006), o deputado federal João Caldas (PL-AL) que criou a Fundação Quilombo, em Alagoas, recebeu licença para uma rádio FM educativa em Maceió em dezembro de 2005 e, no governo FHC, recebeu uma TV educativa em Maceió e cinco emissoras de rádio no interior do estado, afirmou que não acredita que isso vá mudar. ‘As pessoas mais influentes são as que têm meios de comunicação, como ACM na Bahia, Orestes Quércia em São Paulo e a família Sarney no Maranhão. Comunicação dá voto’, disse ele na época.
Porém, apesar desta trajetória, o rádio ainda poderia resgatar seu caminho precursor através de iniciativas educativas, de resgate da cidadania e de inclusão social, se os legados de Bertold Brecht, Mario Kaplún e Paulo Freire fossem colocados em prática. Com um vislumbramento positivo, e em tom de repúdio ao caminho do rádio face aos interesses políticos, este artigo finaliza com uma frase de Roquette-Pinto.
‘O rádio é a escola dos que não têm escola, é o jornal de quem não sabe ler, é o mestre de quem não pode ir à escola, é o divertimento gratuito do pobre, é o animador de novas esperanças, o consolador dos enfermos e o guia dos sãos – desde que o realizem com espírito altruísta e elevado, pela cultura dos que vivem em nossa terra, pelo progresso do Brasil’ (EDGARD ROQUETTE-PINTO)
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Professora universitária, Juiz de Fora, MG