Seus obituários a partir de 15 de dezembro de 2013 fixaram-se na rivalidade com a irmã mais velha, Olivia de Havilland, tão celebrada, querida e ainda mais longeva. Natural: cinéfilos apreciam o que está no telão e também o que acontece atrás das câmeras. Na extensa filmografia dos seus 70 anos de carreira apareceram todos os prêmios, sucessos, parceiros de elenco e diretores.
Poucos se debruçaram sobre a Joan Fontaine (1917-2013) produtora independente, sócia do seu segundo marido, William Dozier (1908-1991, dez anos mais velho, ator e produtor). Foi na pequena Rampart Productions, então sediada em Hollywood, que em 1948 Joan Fontaine fez uma de suas apostas mais audaciosas como atriz, produtora e mulher.
Já premiada com um Oscar, considerada uma das estrelas de primeira grandeza de Hollywood, pretendia um papel romântico em atmosfera europeia, fin de siècle (seus pais eram ingleses), diferente do suspense noir de Rebeca, de Alfred Hitchcock. Queria converter-se na verdadeira mulher inesquecível, apaixonada, capaz de sacrificar tudo por um grande amor.
A ideia de usar a novela de Stefan Zweig Carta de uma desconhecida foi certamente dela e não do marido, sócio na Rampart e cujas predileções apontavam para outra direção. Dela também a escolha do um refinado cineasta alemão, com longa experiência na França para dirigi-la. É cronologicamente o terceiro filme americano de Max Ophuls. O primeiro, Vendetta (1946), teve as filmagens interrompidas quando o diretor foi demitido pelo paranoico produtor Howard Hughes. O segundo, o inexpressivo The Exile (1947), foi produzido e protagonizado por Douglas Fairbanks Jr., o dono do gênero capa-e-espada.
Concepção esmerada
Joan reuniu um autêntico dream team: o produtor, John Houseman (romeno-americano, coautor da história de Cidadão Kane, descobridor e colaborador de Orson Welles), e o dramaturgo-roteirista Howard Koch, o mesmo de Casablanca (roteirista do mesmo Welles no épico radiofônico “Guerra dos Mundos”, mais tarde denunciado como comunista pelo senador Joseph McCarthy).
A escolha do galã francês recém-chegado a Hollywood, Louis Jourdan, obedeceu ao mesmo imperativo romântico, par ideal para a adolescente sonhadora que passa a vida suspirando e seguindo o seu amado. Na novela original (narrada na primeira pessoa do singular), o destinatário da carta é um escritor; na adaptação cinematográfica, converteu-se no famoso pianista Stefan Brand. O nome inventado é uma ostensiva homenagem ao autor, Stefan Zweig, que se suicidou em Petrópolis (RJ), em 1942, e cuja obra começou a ser resgatada nos EUA e na Europa em seguida à Segunda Guerra Mundial, três anos antes do lançamento do filme.
Carta de uma desconhecida, uma das mais celebradas novelas femininas e feministas de Zweig, publicada originalmente em 1922, converteu-se em sucesso internacional traduzida para 40 idiomas. A versão de Fontaine-Koch-Ophuls é a terceira – a primeira, de 1929, teve como roteirista um dos mais importantes teóricos de cinema, o húngaro Béla Balasz (Herbert Bauer, 1884-1949). A segunda é finlandesa, de 1943. Da versão “pirata” filmada na Inglaterra em 1933 com Margaret Sullivan não sobrou cópia.
Das 55 obras de Zweig adaptadas para o cinema – um recorde – a mais zweiguiana é esta produção de Hollywood concebida com tanto esmero e fidelidade por uma atriz que sabia o que poderia acrescentar ao original.
Ainda em catálogo
O dramaturgo espanhol Alejandro Casona (autor de As árvores morrem de pé), exilado na Argentina, fez nos anos 1950 uma adaptação do texto de Zweig para um monólogo teatral a pedido da atriz e declamadora argentina Berta Singerman (o texto de Casona foi incluído em suas obras completas).
No lançamento, o filme de Joan Fontaine não foi um sucesso comercial, mas alavancou as carreiras do Ophuls e Jourdan. A versão em DVD mantém-se no catálogo das distribuidoras. Nostálgica e atual, continua emocionando as netas daquelas que há 65 anos acreditavam que só as mulheres são capazes de amar tão intensamente.