Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As dificuldades são grandes, mas o jornal deve continuar

O Jornal Pessoal 550, de Lúcio Flávio Pinto, da primeira quinzena de dezembro, passa do meio milhar de edição, um recorde de publicação da chamada imprensa alternativa. Mas corre o risco de ser interrompido se o incansável jornalista sucumbir, abatido pelo cansaço e as perseguições do judiciário paraense, pois, afinal de conta, nenhum ser humano é capaz de suportar as pressões que ele tem sofrido. Mas o que mais desmotiva o jornalista não é fogo desferido pelos notórios inimigos.

Desde o inicio ele tinha a clara consciência que seu jornalismo incomodava certas elites políticas e econômicas que mandam e desmandam no Pará e na Amazônia de uma maneira geral. Faz um jornalismo “na linha do tiro”, como ele diz numa num dos livros que publicou, e sabe o que isso implica riscos inimagináveis e muito sacrifício. Por isso, Lúcio deve ter muitos inimigos, visíveis e invisíveis que, certamente, gostariam que ele saísse de cena.

Mas o que parece constranger o jornalista nessas longas décadas de jornalismo de combate não é o fogo inimigo, mas o silêncio dos muitos dos que se mostram admirados com seu árduo e persistente trabalho na imprensa, que adquiriu visibilidade além da província e ganhou o mundo.

Na matéria “A verdade sufocada na democracia atual”, publicada neste número, ele relembra os períodos da ditadura, como a censura, um acontecimento traumático na história desse país, onde muitos de nossa geração tiveram que enfrentar momentos cruéis, onde muitos pagaram com a própria vida.

Concordo com ele quando afirma que “vivemos num período de desbragada autocensura, quebrada apenas pela verborragia drenada pela internet, que acaba comprometendo a capacidade de entendimento da realidade”. Essa é uma anomalia. Talvez nunca, afirma, “tenhamos tido tanta democracia como agora em toda a história republicana do Brasil. Por que, então, seu exercício, que parece pleno, é, na verdade, tão limitado?”

Comida, diversão e arte

Poderia responder a pergunta do jornalista de dois modos. A primeira é o reconhecimento que o fim da ditadura civil-militar não passou de uma transição transada, onde muitos dos velhos personagens mudaram de roupagem e continuaram dando as cartas. Aí está o velho maranhense José Sarney, o cacique baiano que se foi, mas foi uma figura de proa do regime autoritário. Temos os meios de comunicação sob o comando dos grandes grupos econômicos que ainda controlam e ditam a pauta da política brasileira.

Não podemos dizer que nesse país, mesmo nessa democracia que vivemos, existe liberdade de expressão. O que vemos diariamente é o controle perverso da mídia desse país, hoje com as suas ramificações nos Estados mais longínquos, como em Manaus e em Belém do Pará. Elas jogam um peso forte na alienação em que vivemos, pois são as grandes responsáveis pelo anestesiamento de uma população que não tem acesso à educação básica para pensar os problemas desse país. Por essas e outras razões temos um país sem memória, hipnotizado e idiotizado pelo consumo e pouco consciente do significado do que seja uma nação.

Não podemos deixar de reconhecer, também, que neste país os períodos da chamada transição sempre terminaram em conciliação. A democracia por aqui não passa de uma idéia fora do lugar, como reconheceu um sociólogo paulista. Na verdade, a nossa modernização, querendo queimar etapa, é uma democracia do conchavo, do “você sabe com quem está falando?” e do “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Uma democracia sem revolução, sem reforma agrária e todas as reformas necessárias para que este país seja um país decente.

Uma democracia onde se mantém intacta a Casa Grande e a Senzala, como nos mostra um cineasta brasileiro no filme Som ao Redor, ao retratar o cotidiano da classe média numa rua do Recife. Belém deve ter os seus sons ao redor, nas Docas, o lugar “nobre” da cidade, com suas torres e uma classe endinheirada e arrogante cheirando merda do alto de suas torres.

É verdade, como afirmou Lúcio Flávio, que nunca se denunciou tanto roubo e nunca se roubou tanto. É, em parte, verdade, pois durante a ditadura militar se roubou muito, mas tudo era censurado. Quem não lembra o caixa dois (como se diz hoje) que se fez durante a construção da ponte Rio Niterói, hoje ignorado pela grande mídia? Quem não se lembra da construção (e seus absurdos) da estrada Belém-Brasilia e a Transamazônica? Quem não se lembra da grossa corrupção no órgão elogiado pelo Lúcio, como uma positiva intervenção de um “Estado Planejador”?

Não consigo afirmar que “nunca tivemos tão próximos de eliminar vícios e corrigir erros”, erros históricos sob uma democracia para inglês ver.

O planejamento, que começou no período leninista e stalinista, nessa época de grande volatilidade do capitalismo financeiro e suas políticas neoliberais, que apregoa menos Estado e mais liberdade para o capital, tornou-se uma quimera nesses tempos neoliberais e, por isso, temos diante de nós um animal sem forma, o ornitorrinco, o animal exótico inventado por Chico de Oliveira para dar conta de entender este país.

Nem a Amazônia, nem o resto do país, entrará nos eixos somente com planejamentos elaborados por tecnocratas, muito bem utilizados pelos militares durante a ditadura. O tecnocrata não é neutro e a razão instrumental não politiza.

A lógica do capitalismo (um termo pouco usado nos textos de Lúcio, certamente para evitar certos reducionismos tão presentes nas análises da Amazônia) funciona exatamente dessa forma com “recordes econômicos”, com “a riqueza que acumula e não distribui”, pois isso faz parte de sua lógica. É a acumulação no meio da miséria. Temos, como vemos hoje no Brasil, um aguçamento dos conflitos, o inchamentos das grandes metrópoles e da própria sede do governo central (Brasília), como mostrou uma reportagem recente de uma revista paulista. A demanda vai aumentar, como vimos nas manifestações do mês de junho. Um povo que vive na penúria, sem a mínima capacidade de consumo, não tem aspirações, não vai às compras. Mas quando tem oportunidade de um mínimo acesso a ele passa querer não só querer comer bem, mas quer diversão e arte, como diz a música.

Coragem e tenacidade

Na minha modesta opinião, temos diante de nós uma bomba. As cidades explodem, a mobilidade urbana aumenta e vamos encontrar contradições imensas nas próximas décadas, pois o país se moderniza sem ter passado pela modernidade. Na verdade uma modernidade sem revolução.

As contradições da Amazônia são as mesmas do país, que obedece a mesma lógica, a lógica do capital que se internacionalizou. Temos um país de modernidade tardia e veloz nesse momento de sua história. Uma modernidade que encontra um povo obcecado pelos bregueços que a indústria eletrônica oferece e uma educação que incentiva a barbárie, como Lúcio mostrou nessa e na edição anterior.

Diante desse quadro, afirmo: o Jornal Pessoaldeve, sim, continuar, por uma razão de fundamental importância, pois revela o que se quer ocultar. É verdade que é lido por uma pequena parcela da população, mas ele desempenha um papel vital na história da sociedade brasileira. Hoje o JP e os livros que Lúcio publica são citados em publicações nacionais e internacionais e funcionam como uma espécie de antena, um verdadeiro observatório da Amazônia.

Ficaríamos mais pobres sem esse pequeno e bombástico jornal. Temos pelo menos um contraponto à história oficial. É um trabalho que exige coragem e tenacidade, e, muitas vezes, um esforço sobre-humano. Mas o velho Mandela que partiu recentemente nos mostrou que a paciência e a crença na justiça são uma forte razão para viver… e até morrer. Conte comigo.

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Benedito Carvalho Filho é sociólogo, professor da Universidade Federal do Amazonas e ombudsman do Jornal Pessoal