Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Loja cheia para venda de maconha legalizada

Enquanto o New York Times acompanhava de perto o que acontecia no Colorado, depois que esse estado americano anunciou a liberação da compra, uso e cultivo limitado de pés de cannabis, The Economist (21/12/2013) já havia escolhido o Uruguai como “o país do ano”, graças à aprovação do casamento gay e ao ousado experimento do país de José Mujica com a legalização do uso recreacional da maconha. Em 2014, o Uruguai vai procurar desconectar o mundo dos usuários de marijuana do universo das drogas pesadas. O presidente uruguaio não é bobo e chama as novas leis de regulação do uso recreativo da maconha de “experimento”.

Nos Estados Unidos, no Colorado, as filas davam voltas ao quarteirão no primeiro dia do ano em Denver, descreveu o New York Times (1/1):

“Eles estavam entre as centenas de turistas e residentes de todo o Colorado que fervorosamente participaram da primeira venda da maconha recreacional regulada pelo estado. Eles entraram em 40 lojas, do centro de Denver a resorts de esqui, apresentaram suas identificações e em uma simples transação fizeram parte do que os partidários saudaram como um histórico abandono das leis de drogas focadas em punição e proibição.”

O editor de marijuana do Denver Post, Ricardo Baca, apresentou um novo site: é o The Cannabist (o expert em marijuana, segundo o Urban Dictionary). O trabalho de Baca foi comentado na edição 777 deste Observatório (ver “O editor de maconha“). Ele criou a página no final de 2013. É um blog do Denver Post com endereço próprio na web, excelente layout, assuntos de interesse dos usuários de cannabis, receitas para os esfomeados, dúvidas de leitores, sugestões e notícias. E mais política, crimes, negócios, política local e internacional. Um ótimo trabalho de imprensa virtual feito por um editor do jornal que teve um papel fundamental na liberação do uso recreativo da marijuana no Colorado.

Feito reconhecido

O Cannabist retratou uma imagem mais serena que o New York Times. Não houve incidentes ou excessos no primeiro dia do ano, informou Kirk Mitchell, repórter do Denver Post autor da matéria publicada no novo blog do jornal. Tudo aconteceu tranquilamente no dia da venda legal da maconha no Colorado. A maior preocupação foi o uso público da droga. Que não é permitido e nenhum caso foi relatado pela polícia.

Mas nem tudo foi festa. Houve gente a protestar. Preocupações com aumentos em acidentes com autos dirigidos por jovens surgiram nas cabeças dos opositores ao uso recreativo da marijuana. Essas inquietações não são novidade. Em 2010, o famoso jornalista Steve Lopez, do Los Angeles Times, foi convidado pela procuradora-geral do estado da Califórnia, Carmen Trutanich, para participar de um teste para verificar os efeitos causados a motoristas pelo álcool e por marijuana.

Steve acendeu um cigarro de maconha na presença de um sargento da polícia de Los Angeles, junto com seu colega radialista Peter Tilden, e saiu a dirigir no tráfego complicado da cidade, publicou o LA Times (20/10/2010). Cada um experimentou um tipo diferente de marijuana (o mercado internacional de cannabis oferece várias qualidades do produto, na Europa e nos Estados Unidos). Steve declarou que “sentiu-se melhor que se tivesse tomado algumas cervejas ou copos de vinho” e que provavelmente, ao dirigir sob influência da cannabis, não daria mais trabalho que “gente a falar em celulares e enviar mensagens de texto enquanto dirige”, disse o jornalista. Que estacionou bem, depois de fumar o “baseado”, e dirigiu por entre cones de borracha com boa desenvoltura. O próprio oficial da polícia reconheceu seu feito.

Sem interesse para o narcotráfico

Steve foi procurado pela procuradora porque havia sido liberado por um “ginecologista para usar marijuana para suas dores nas costas”. O médico confessou “não saber nada sobre dor nas costas, mas acreditava que a maconha poderia ser a cura para suas dores”. História boa, a do Steve. Já seu colega não foi tão bem. Na realidade, nenhum dos dois atendeu as exigências da polícia de Los Angeles. Lopez bobeou na escolha de uma via aberta para ele, entre duas outras fechadas por semáforos. Perdeu tempo, deixou cair o “bagulho” no chão do carro e demorou na resposta ao sinal aberto entre dois fechados. Foi seu único erro e ele havia fumado muito: dois grandes cigarros “à la Bob Marley”. Já o seu colega radialista estacionou mal e derrubou quase todos os cones na pista de testes de manobras para motoristas. Foi um desastre total.

A ação da droga foi diferente nos dois homens. Mas a ultraconservadora polícia de Los Angeles reprovou os dois. Lopez não ficou satisfeito com o resultado e ofereceu-se para continuar com os testes como voluntário. Ele ficou convencido que os perigos da direção sob a influência da cannabis dependem do tipo e da quantidade consumida da droga: se você fumar mais de um produto mais forte, mais incapacitado a dirigir vai estar. Uma pequena dose é tão perigosa como um ou dois copos de cerveja, acredita Lopez. No mesmo ano, o jornalista ofereceu-se para participar de novos testes, “em nome da ciência”.

Os problemas do uso recreativo da maconha não se resumem aos perigos no trânsito caótico das cidades. Uruguai e Colorado têm populações pequenas. O Uruguai tem 3,4 milhões de habitantes e a população do Colorado era de 5.029.196 habitantes em 2010, com projeção para 5.187.582 para o ano passado, de acordo com o portal oficial do estado. São territórios com escassa população onde não há forte presença de interesses do narcotráfico. Já o Brasil tem população grande e forte presença do tráfico de drogas em seu território.

A demonização da marijuana

Pelo menos neste momento, pensar em liberar o uso recreativo da maconha no Brasil não pode ir além de um exercício intelectual especulativo. Nosso povo, em sua grande maioria, não apoia a legalização e nosso território faz parte da rota internacional do tráfico. Mesmo em uma remota hipótese da liberação do consumo e cultivo, qualquer um que tentasse plantar sua própria cannabis seria punido pelo tráfico. O negócio das drogas ilegais tem muito poder no Brasil. E não interessa nem um pouco a seus interesses na região perder um mercado como o brasileiro sem luta.

Uma pesquisa da Unifesp financiada pelo CNPq revelou que 75% dos entrevistados são contra a legalização da maconha no Brasil. Apenas 11% apoiam a causa, “9% não souberam responder, e 5% não responderam”. Entre janeiro e março de 2012 foram entrevistadas 4.607 pessoas em 149 municípios do Brasil sobre o assunto, revelou o portal G1, da Globo (1/8/2012).

Nos resultados publicados em 2012, o Brasil estava em 15º lugar em número de usuários de marijuana. Atrás de Canadá, Nova Zelândia, Itália, Estados Unidos, Austrália, França, Chile, Argentina, Dinamarca, Holanda, Alemanha, Portugal e África do Sul. Último lugar no G-15 do consumo da maconha mundial.

O alto índice de rejeição mostra que temos uma população que majoritariamente repele a liberação da marijuana. Muitos preconceitos ainda pairam sobre ela. A maconha veio para o Brasil com a colonização portuguesa. Os africanos já conheciam seu poder alucinógeno há bastante tempo, e seu uso por eles marcou a droga como algo diabólico, maligno e ligado a populações pobres e marginalizadas no imaginário da nossa sociedade provinciana e conservadora. Essa imagem cristalizou-se entre nós até hoje. Apenas 3% da população consumiram a droga em 2011, informou o portal da Globo.

Legalização da maconha em país pequeno, liberal e periférico ao mundo do narcotráfico é uma coisa. Mas pensar a legalização em um país continental fronteiriço a vários produtores de drogas e com altas taxas de rejeição popular ao uso da maconha é um desafio de resultados imprevisíveis. Uma utopia com bases precárias na realidade em que “especialistas” sem experiência com a droga, através da mídia conservadora, assustam a população e demonizam o uso da marijuana. Abordar o tema é tabu para muitos. Poucos querem discutir o tema a sério, enquanto a rejeição a marijuana continua muito grande na sociedade. Ainda há muito a ser mudado no país até que possamos discutir em ambiente social adequado o uso recreativo da cannabis.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor