‘O sistema político do Brasil funda-se na opinião nacional, que, muitas vezes, não é manifestada pela opinião, que se apregoa como pública. Cumpre ao imperador estudar constantemente aquela para obedecer-lhe.’
Assim, Dom Pedro II abre os Conselhos à Princesa Isabel de como melhor governar, escritos em 1871, às vésperas de ele viajar para a Europa e passar a regência à filha. O manuscrito, guardado no Arquivo Grão Pará, em Petrópolis (RJ), tivera uma edição em 1956. Com prefácio de Ruy Vieira da Cunha, as Edições GRD – iniciais de Gumercindo Rocha Dórea, o editor que lançou os primeiros livros de Rubem Fonseca – colocaram nas livrarias, em 1985, sua edição fac-similar. Assim, o leitor degusta até a caligrafia do imperador e as vacilações que teve para escolher esta ou aquela palavra, pois foram mantidos os borrões e os rabiscos.
A releitura deste belo opúsculo pode ajudar muito a entender certo divórcio entre a opinião quase consensual que a grande mídia tem do governo Lula, igualmente tida como pública, e a opinião nacional, isto é, o que o Brasil acha de Lula. Sua eleição e reeleição já o tinham aprovado nas urnas, mas os indicadores de sua avassaladora popularidade medem tal aprovação a partir de outros mirantes.
Parodiando Dom Pedro II, a quem o governo deve prestar atenção? À opinião nacional ou à opinião pública, que pode não estar em sintonia com a da grande mídia? Pois parece óbvio que já há algum tempo a opinião pública não vem sendo adequadamente espelhada pela grande mídia nem ela tem sido capaz de aumentar sua quota de influência na formação da opinião nacional, que dá conta de um consenso do povo sobre aqueles que o governam.
Cláusulas pétreas
A internet trouxe o fenômeno dos sítios e blogues e de numerosos outros recursos que contrariam a grande mídia, sem medo e com muito mais eficiência, como se comprova pelo papel decisivo que tiveram na recente eleição de Barack Obama.
Textos como o de Dom Pedro II contribuem para fixar um norte nos debates. Do contrário, até figuras sensatas como Cristovam Buarque (PDT-DF) correm o risco do deslize, de que é exemplo o disparate proferido pelo senador, no dia 6 de abril passado:
‘Deixo o povo comentar quem é a favor ou contra um plebiscito e se deve ou não fechar o Congresso. Até porque as razões para fechar não são apenas as dos escândalos. São as razões da inoperância e são as razões do fato de que estamos hoje em uma situação de total disfunção, diante do poder, de um lado, das medidas provisórias do Executivo e, de outro, das medidas judiciais do Judiciário. Somos quase que irrelevantes’.
É verdade que, questionado a seguir, emendou: ‘Um Congresso ruim aberto é melhor que um Congresso fechado’. Mas o mal já estava feito. Quem propõe fechar parlamentos é ditador, que, aliás, não apenas propõe, fecha! Este foi o único atenuante de sua infeliz declaração: manter aberto ou fechado o Congresso seria uma decisão tomada em plebiscito.
Visto com mais rigor, o atenuante é quase um agravante, pois dá ao povo um poder que ele não tem. Em momentos de grande comoção nacional, o povo pode querer a pena de morte, a execução de índios, o linchamento para certos crimes e até as revogações de cláusulas pétreas e artigos protetores da liberdade, garantidos pela Constituição. Ora, o que vale, num Estado de Direito, é lei. Dura Lex, sed Lex. E ninguém pode estar acima dela.
Falas e atos
O manuscrito tem outras passagens memoráveis, como esta:
‘O Conselho de Estado deve compor-se das pessoas de ambos os partidos constitucionais, isto é, que respeitem nosso sistema de governo, e que sejam honestos, e de maior capacidade intelectual e conhecimentos dos negócios públicos’.
Parece muito bonito e talvez seja, mas ‘o nosso sistema de governo’ considerava legal a escravidão. A Lei do Ventre Livre viria a 28 de setembro daquele ano de 1871. E a dos sexagenários somente em 1885, também no dia 28 de setembro.
Ainda hoje, nem as escolas nem a mídia informam por que razão há tantas ruas chamadas 28 de Setembro nas cidades brasileiras, principalmente naqueles estados da Federação onde o trabalho escravo se fez mais presente.
Dom Pedro II reforça também neste manuscrito a necessidade de instruir o povo, que deve incluir a educação política, mas ele e sua filha pouco fizeram de concreto por aquilo que em tese defenderam. E de um governante a opinião nacional quer atos, não apenas falas. E de resto a mídia brasileira ainda hoje dá mais atenção às falas do que aos atos, esquecendo que nas democracias o soberano não é o imperador, é o povo, e de que é muito importante educar o soberano, do contrário ele é vítima de hábeis manipuladores e demagogos.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)