Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa paulista e o governador

Nos últimos meses, tenho ouvido e lido comentários a respeito do engajamento da mídia paulista na pré-candidatura do governador José Serra à Presidência da República em 2010. Não seria uma campanha aberta, obviamente, mas uma tendência a superestimar atos administrativos e políticos do governador, ao passo que potenciais adversários seriam desconsiderados, subestimados ou tratados de forma claramente diferenciada – para pior, claro. A princípio, dada a trajetória e os serviços prestados por esses veículos ao país, considerei essas informações um tanto equivocadas, mas, em uma leitura mais atenta, pode-se dizer que há realmente algo de estranho ocorrendo.

É o caso, por exemplo, de reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo de 5 de abril último. Com o título ‘Serra exporta vitrines de sua gestão e amplia presença nacional‘, a reportagem elenca uma série de projetos e programas do governo paulista que estariam sendo copiados por outros estados, com direito até à cessão de técnicos para auxiliar os demais governos. Entre esses programas, estariam a chamada Nota Fiscal Paulista, um sistema de pregão para compras públicas, o bônus por desempenho e um sistema de substituição tributária.

Identificar a ‘paternidade’

Dizer que o governo de São Paulo exporta políticas públicas bem-sucedidas não tem nada demais, até porque é altamente desejável que boas práticas de gestão se espalhem pelo país de forma a serem aperfeiçoadas e promovam a modernização das administrações estaduais e municipais. A estranheza, no caso, advém do fato de a matéria apontar como ‘vitrine de Serra’ programas criados por outros governos ou governantes, inclusive de São Paulo. Não se trata de mera discussão de paternidade, mas de se discutir o falseamento – ou, no mínimo, a omissão – de informações transmitidas aos leitores do jornal. De certa forma, o jornal zomba da inteligência dos leitores ao desconsiderar a origem dos programas que estão hoje na tal ‘vitrine’ de Serra.

Após esperar por repercussões que lançassem luz sobre a questão, encontrei apenas um texto de Luis Nassif que, em seu blog, critica a matéria e apresenta a origem de alguns dos programas, como os estudos da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul e dos próprios técnicos da Fazenda paulista, em governos anteriores, sobre a nota fiscal eletrônica. Nassif também trata da questão da substituição tributária que, de fato, é muito anterior ao governo Serra, bem como os acordos entre estados para a uniformização de procedimentos fiscais, que se desenvolvem há anos. E nada mais li a respeito – pelo menos, não em veículos e sites de maior expressão.

Todo programa do governador José Serra começou, obviamente, depois de janeiro de 2007, quando foi empossado no cargo. Logo, para quem acompanha minimamente o desenvolvimento de políticas públicas, é perfeitamente possível identificar a gênese de programas e projetos. Com isso, mais do que a questão da ‘paternidade’, seria possível apontar o sucesso de determinadas políticas e mostrar o intercâmbio em curso no Brasil, inclusive com as eventuais características incorporadas por Serra em sua gestão.

Programas ‘exportados’ são ainda incipientes

Por uma questão de proximidade – sou mineiro –, não posso deixar de lamentar a falha do jornal ao não checar, de fato, quem são os verdadeiros autores de alguns dos projetos citados, equivocadamente atribuídos ao governador de São Paulo. Aponto aqui pelo menos três ações que já estão em curso no governo de Minas e que são mostradas pelo jornal como novidades de Serra. O pregão eletrônico, por exemplo, cujos primeiros passos foram dados ainda nos anos 90, foi regulamentado por Serra em janeiro de 2007, enquanto em Minas foi criado em janeiro de 2002, ainda no governo Itamar Franco. Com novas regulamentações em 2003 e 2008, já no governo Aécio, o programa ganhou status e se ampliou, de forma que mais de 80% do volume e mais de 70% do valor das compras do estado, hoje, são realizados por este meio.

A reportagem cita também, como novidades apresentadas ao país pelo governo de São Paulo, os bônus por desempenho, adotados em 2008 pelo governo Serra, juntamente com os acordos de resultados entre os órgãos públicos e gestão central do estado. É curioso que tais programas sejam ‘exportados’, já que ainda são incipientes no governo paulista. O primeiro acordo de resultados data de julho de 2008, enquanto a bonificação por resultados se restringe à área de educação e ainda aguarda aprovação pela Assembléia Legislativa. Em Minas, ambos os programas já são realidade e apresentam bons resultados, estando já consolidados e largamente disseminados entre as práticas de gestão. De 2004 para cá, por exemplo, já foram celebrados 103 acordos de resultados, mesmo prazo em que se dá o pagamento do prêmio de produtividade. Em 2008, cerca de R$ 300 milhões foram distribuídos a 300 mil servidores do estado.

A Serra o que é de Serra

Outros programas semelhantes aos apontados pela reportagem do Estadão estão, certamente, em desenvolvimento pelo país. Não obstante a reconhecida competência de José Serra, como político e gestor público – e, talvez, justamente por isso –, é de se supor que o governador tucano não tirou ‘coelhos’ da cartola ou reinventou a roda para definir suas políticas. Caberia ao jornal, no mínimo, conhecer melhor o tema antes de colocar na ‘vitrine’ de Serra aquilo que não lhe pertence. Nada contra mostrar o que o governo paulista faz de bom e como isso está se espalhando pelo país. Mas perdeu-se a oportunidade de ressaltar a troca de experiências entre administrações estaduais – algo saudável e que, espera-se, se consolide nas práticas políticas brasileiras – em favor de uma reportagem que soa, inevitavelmente, como proselitismo político pré-eleitoral, mesmo que não tenha sido esta a intenção.

É curioso notar que a reportagem se concentrou em programas de gestão, tema muito caro ao governador de Minas e que é apontado por analistas como a alavanca de sua candidatura à Presidência. Seriam sua vitrine de hoje e cartão de visitas para 2010. Há que se dar um crédito ao jornal ou mesmo considerar a hipótese da coincidência, mas recomenda-se cuidado nesse momento ainda distante do pleito, mas já de plena ebulição política. É melhor dar a Serra o que é de Serra, sob pena de, fazendo o oposto, parecer, de fato, apenas um veículo engajado na campanha do governador paulista, o que não condiz com a tradição e alta qualidade sempre ostentadas pelo jornal ao longo de sua história.

******

Doutor em Economia, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)