Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma homenagem aos desaparecidos

Faz muito tempo que penso em escrever algumas histórias que vivi, quando trabalhei como repórter investigativo no período de 1976 até 1982, quando comecei a buscar outra área de trabalho. As matérias foram publicadas no Coojornal – órgão da cooperativa de jornalistas de Porto Alegre – na revista IstoÉ, então comandada por Mino Carta e no Jornal de Brasília, através da Agência de Notícias da Coojornal. A primeira investigação começa com o desaparecimento do traficante conhecido como “Nego Lula”, que bancava um grupo grande de policiais gaúchos, incluindo aqueles da Delegacia de Tóxicos. Nesta época ameaçou denunciar o esquema à Polícia Federal. Sumiram com ele, antes disso. Seu corpo nunca foi encontrado.

Assim começou a minha história de repórter investigativo. Conheci o cunhado do traficante, João Rebimba Tavares, conhecido como João Louco, que havia fugido para Curitiba, quando os policiais mataram “Nego Lula”. João me apresentou para diversas fontes, todos bandidos, é óbvio. Queria descobrir quem eram os policiais responsáveis pela morte e sumiço do corpo. Enfim, queria escrever a matéria completa. Desde então conheci outro traficante, conhecido como “Amigo”, que fora junto e acompanhou as torturas na central de polícia em POA, onde fica o conhecido Palácio da Polícia, à beira do riacho Dilúvio.

Carteira de visitante

Outro personagem descoberto em seguida. Os policiais usaram um preso como motorista da Kombi, que levou o corpo até o litoral. O apelido dele era “Catarina”.

Depois do episódio, ele fugiu para São Paulo. A irmã dele trabalha como cozinheira em um restaurante conhecido no centro da capital. O caso nunca foi esclarecido. O ponto máximo que consegui saber é que quatro policiais foram enterrar o corpo.

Depois dois voltaram e ainda mudaram de local. Esta foi uma prática comum usada durante a ditadura militar, para encobrir assassinatos, não somente de presos comuns, mas também de presos políticos.

Pouco tempo depois comecei a fazer visitas aos presídios do estado, tanto ao Presídio Central, como na Penitenciária do Jacuí, em Charqueadas, onde hoje funciona um complexo de prisões. O Presídio Central virou notícia internacional, por ser considerado o pior do país, com 4.500 presos. Visitava não como jornalista.

Consegui uma carteira de visita, como se fosse “primo” do amigo. Documento que ainda guardo no meu arquivo. Durante seis anos fiz esta rotina, contando ainda com o apoio da advogada Clecy Fogliatto, especializada na área criminal, e que anos depois casou com Ênio Amador dos Reis, conhecido como Manecão, certamente o preso considerado mais perigoso do sistema. O casamento ocorreu no Presídio Central, tendo como testemunhas eu e o jornalista Airton Muller, que tem dois irmãos delegados, um deles, Wilson Muller é o presidente da Associação dos Delegados de Polícia do RS.

O esquadrão gaúcho

Com os contatos e as informações que obtinha dos bandidos, comecei a esbarrar com um esquadrão gaúcho formado por policiais das delegacias de roubos e furtos e de assalto. Que resultou na matéria publicada na IstoÉ “Esquadrão Falcão ataca no Sul”. A Escuderia Falcão, como eles denominavam, era formada por um grupo de policiais que se achava acima da lei, praticava todo tipo de crime, incluindo mortes, execuções e extorsões. Tinha como espelho a Escuderia LeCoq, que atuava no Rio de Janeiro, mas a sede era no Espírito Santo. Por outro lado, acabei me envolvendo em outra história bastante conhecida, na área política. Tinha um relacionamento grande com o advogado e escrito, Décio Bergamaschi Freitas, procurador da república cassado, exilado em Montevidéu, que liderou a campanha para trazer a brasileira Flávia Schilling, presa no Uruguai, de volta ao Brasil.

Primeira tentativa de guerrilha

Certo dia, já em 1978, Décio disse que havia recebido um telefonema do sargento Alberi Vieira dos Santos de Rondonópolis (MT), comunicando que ele e o coronel Jefferson Cardim Alencar Osório, queriam dar uma entrevista e contar a famosa “Operação Três Passos”, a primeira tentativa de guerrilha no Brasil, ocorrida em março de 1965, quando um grupo de 23 guerrilheiros, exilados em Montevidéu, invadiram a pequena cidade de Três Passos. Foram presos pelo Exército no Paraná, na cidade de capitão Leônidas Marques. A Operação também envolve uma remessa de dólares de Cuba.

A entrevista foi acertada na Cooperativa dos Jornalistas, que pagou as despesas para os dois se deslocarem a Porto Alegre, fato ocorrido em outubro de 1978. O depoimento foi publicado no mês seguinte e repercutiu intensamente, até hoje é citado em vários livros e teses sobre os episódios daquela época. Alberi e Jefferson confirmaram a remessa do dinheiro cubano – cerca de dois milhões de dólares – e acusaram Leonel Brizola de desviar os recursos e não dar apoio aos guerrilheiros, que eram do chamado Movimento Nacionalista Revolucionário (MRN).

Che Guevara no sofá do Décio

São informações conhecidas e já publicadas. Ocorre, que no meio da discussão e da ação de exilados políticos brasileiros, estava Che Guevara, que acabou capturado na Bolívia no dia 8 de outubro de 1967 e um dia depois executado com seis tiros no peito. O plano da guerrilha brasileiro, que contou com o apoio cubano era instalar focos ao longo da fronteira brasileira, que na época não tinha vigilância alguma. E os guerrilheiros queriam realizar uma ação antes do primeiro ano do golpe militar. Neste contexto é que foi definida a ida de Che Guevara para a Bolívia. O historiador Décio Freitas – autor de um clássico chamado Palmares a guerra dos escravos – me contou mais de uma vez que Che Guevara dormiu no sofá da sala do apartamento, onde ele morava em Montevidéu. Che estava gordo, justamente para acumular energia, porque ia para o mato.

Depois da entrevista, no dia 11 de fevereiro de 1979, o sargento Alberi Vieira dos Santos foi assassinado. Seu corpo foi encontrado em uma estrada deserta, no município de Medianeira (PR), com quatro tiros. Ele investigava a morte do irmão caçula, José Soares dos Santos, ocorrida em janeiro de 1976. Alberi já tinha perdido o irmão, Silvano Soares dos Santos, que foi jogado do segundo andar do Batalhão de Fronteiras, no dia 26 de junho de 1970. Além de perder também um tio, que estava na “Operação Três Passos”. O caso de Silvano Soares está registrado no livro “Retrato da Repressão Política no Campo no Brasil no período de 1962 até 1985”, publicação oficial, editada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e a Secretaria de Direitos Humanos, em dezembro de 2010.

O assassinato de Alberi

Uma citação de outro livro – A ditadura envergonhada, de Élio Gaspari: “Alberi era um dos exilados mais corajosos e faladores de Montevidéu”. Alberi e o coronel Jefferson permaneceram pouco mais de uma semana em outubro de 1978. As gravações do depoimento renderam 17 horas. Fui o responsável por tirar as fitas, ou como se diz atualmente, pela degravação. Conversei mais com Alberi. Ele disse que estava em Rondonópolis com 92 famílias, que haviam sido expulsas de Foz do Iguaçu, para a construção de Itaipu.

Produziam, discutiam política e treinavam tiro. Fez um convite para visitá-los.

Também falou sobre os contatos que tinha na América Latina. Conhecia todos os grupos guerrilheiros que atuavam nesse período. Tinha um ódio visceral contra Leonel Brizola, pois o considerava responsável pela perda dos dois irmãos e do tio.

Era um militar treinado, inclusive com documentação falsa – mostrou uma carteira de inspetor de quarteirão do Paraná –, isso quando os exilados estavam voltando ao Brasil. Ele não confiava no projeto da anistia de mão dupla, que também privilegia os torturadores.

Sequestro dos uruguaios

Logo em seguida aconteceu em Porto Alegre o sequestro dos uruguaios Lilian Celiberti, e os dois filhos, e Universindo Díaz. A Coojornal estava mobilizada porque os dois visitaram a entidade, tinham como contato o recém-falecido jornalista Osmar Trindade, que na época era chefe de reportagem. Outro contato era o conhecido militante do PCB João Aveline, que trabalhou muitos anos na RBS.

Como os dois uruguaios não apareceram nos “pontos” marcados, os companheiros começaram a ligar de São Paulo avisando que algo havia ocorrido. O sequestro aconteceu numa sexta-feira, quando o jornalista e chefe da sucursal da Veja, Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo JB Scalco, foram ao apartamento na Rua Botafogo, no bairro Menino Deus, e encontraram um grupo de policiais.

Porém, a informação só chegou para Osmar Trindade na segunda-feira, quando ele foi até a sucursal da revista e Luis Cláudio contou a história. A esta altura, os filhos de Lilian ainda estavam sequestrados. Minha parte foi buscar os autores, quem estava envolvido. Nesse período convivia muito com o tenente da Aeronáutica, Mário Ranciaro, que era um obstinado por esclarecer a morte e o desaparecimento de um sargento do Exército chamado Hugo Kretschoer, envolvido no “Caso Mão Amarradas” – a morte do sargento Manoel Raimundo Soares, cujo corpo foi encontrado no rio Jacuí, com as mãos amarradas.

Ranciaro identificava os agentes na rua

Ranciaro chegou a ser preso pelo 5º Comando da Aeronáutica e levado para o Hospital Central no Rio de Janeiro para passar por um exame de sanidade mental.

Ele era reformado, mas por ter um leve problema de desritmia. Ele conhecia os agentes da repressão. Não somente isso. Andava pela “Rua da Praia” – a Rua dos Andradas, no centro da capital, apontando os caras. Fiz isso muitas vezes com ele. Ele gritava: “Como vai, coronel Frota”, e dizia, esse é da segunda seção do Exército, aquele outro trabalha para a Marinha, e assim por diante. Com o sequestro, ele se empenhou em descobrir quem estava envolvido. Fomos à casa de um agente da Divisão Central de Informações, na Rua Guilherme Alves, bairro Partenon. Ele tinha três irmãos conhecidos na Polícia Civil gaúcha: Leônidas Reis era o superintendente, o irmão Marco Aurélio Reis era diretor do Dops, e outro irmão, o inspetor Altamiro também trabalhava no Dops.

Acabei publicando esta história, dos irmãos Reis, numa edição especial da IstoÉ, com a capa “sequestro no Cone Sul”, matéria de Ricardo Kotscho, e com um box meu sobre “as histórias do velho casarão”, uma referência a sede da Polícia Civil, que na época também englobava a Secretaria de Segurança.

Voltando ao agente do DCI. Ele contou para o Ranciaro, que me apresentou como estagiário do escritório de advocacia do sobrinho dele, que haviam montado um “bureau”, que haviam chegado dois majores do Uruguai e que o DOI-Codi, participara da execução, junto com a equipe do DOPS, comandada pelo delegado Pedro Seelig, conhecido como “Fleury dos Pampas”, amigo do coronel Brilhante Ustra – ele que levava erva-mate para o Ustra em São Paulo.

Alta fonte da secretaria de segurança

Saí dali, fui direto para a sucursal da Veja onde o pessoal estava reunido, incluindo Osmar Trindade e Luiz Cláudio Cunha. Contei o que havia ouvido. A informação abriu a matéria da revista sobre o caso. Depois distribuída pelas agências. Citava uma “alta fonte da Secretaria de Segurança”. Na segunda-feira o delegado Edgar Fuchs, da Polícia Federal ligou para a Coojornal atrás de mim. Disse ele: “Tubino, tu vens aqui amanhã às nove horas, ou queres que eu te mande um convite?”

Fui, é óbvio. O Luiz Cláudio Cunha havia confirmado para ele que a informação era de um free-lancer. Permaneci sob fogo cerrado de dois delegados da Federal, que volta e meia consultavam o coronel Maksen de Castro, o superintendente, e também do advogado do Sindicato dos Jornalistas, Werner Becker, que concordou com os policiais, eu deveria cooperar e dar a fonte. Não dei coisa nenhuma. Depois disso as coisas ficaram difíceis para o meu lado. O Esquadrão Falcão me condenou à morte, colocaram uma foto minha com uma cruz na testa no mural da Delegacia de Assalto e disseram que em uma semana, eu morreria. A direção da Coojornal entrou em contato com os assessores do governador Amaral de Souza. E o coronel Job, recém- empossado na Secretaria de Segurança, mandou me chamar.

Não tem como segurar os loucos

Perguntou se por um acaso eu não poderia trocar de área por um tempo “porque eu não tenho como segurar esses loucos aí de baixo” – o gabinete dele ficava no primeiro andar. Contei que estávamos organizando uma viagem à Amazônia – junto com o jornalista Caco Schmitt e o fotógrafo José Neto. Comuniquei que havia uma derradeira matéria para o Coojornal, era um perfil do delegado Pedro Seelig, e se ele dava autorização para entrevistá-lo. Ele concordou. A reportagem “Um delegado acima da lei”, feita em parceria com Caco Schmitt, foi publicada. O problema não era o perfil, mas o escandaloso caso da morte de um menor de idade – Arébalo – nas dependências do Dops. E o menor era filho da empregada doméstica de Pedro Seelig. O Caco foi até Alegrete e entrevistou o pai do Arébalo.

A versão oficial dizia que ocorrera um acidente – o guri morreu com pneumonia. Na verdade ele trabalhava na associação do bairro, onde Pedro Seelig era o presidente. E estava aprontando. Resolveram “dar um susto” no guri, e convocaram logo o inspetor Itacir, conhecido como Mão de Ferro, e o inspetor Nilo Hervelha, dois torturadores reconhecidos por vários presos políticos. O pai do Arébalo disse que seguidamente o filho pegava carona com o pessoal do Dops, o que dá margem à pergunta: seria ele testemunha de alguma coisa? O fato é que Pedro Seelig não sabia de nada e quase enlouqueceu com a história.

Vou parar por aqui, em outra ocasião prossigo.

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Najar Tubino é jornalista