Toda vez que um humorista se mete em uma controvérsia, surge alguém para dizer que o problema não são as piadas ofensivas, e sim a falta de graça do autor. É mentira. Ninguém vai aos jornais falar mal de humoristas respeitosos, tenham eles talento ou não.
É mais ou menos o caso do arcebispo de São Paulo, d. Odilo Scherer, em relação a um especial de Natal do grupo Porta dos Fundos. “Será que isso é humor?”, ele escreveu no Twitter. “Ou é intolerância religiosa travestida?” No vídeo, assistido 4,4 milhões de vezes até a última [penúltima] terça (http://migre.me/hr3jz), os esquetes citam Jesus, Deus, drogas, Luciano Huck, um carteiraço na Santa Ceia e crucificados que usam Bepantol nas feridas.
A indagação do cardeal tem história. De um lado da briga estão os que não consideram a liberdade um valor absoluto. Entre eles, cristãos que propõem boicote e medidas legais contra o Porta dos Fundos.
Um argumento que deve ser usado no processo é clássico: deve haver restrições ao discurso contrário à democracia ou que faz apologia do crime. O humor ofensivo não teria conteúdo análogo, pois pode incentivar a intolerância (e a violência) contra determinados grupos?
Nos Estados Unidos, uma das grandes derrotas judiciais dessa corrente se iniciou com uma sátira religiosa –uma falsa peça publicitária, publicada na revista do pornógrafo Larry Flynt, em que o pastor Jerry Falwell conta que perdeu a virgindade com a própria mãe.
Retratado num bom filme de Milos Forman, e tendo como objeto a imagem de figuras públicas, o caso discutiu a Primeira Emenda –que trata de liberdade de expressão– e ajudou a firmar princípios como o de que o humor pode ser ruim, burro, grotesco, repulsivo. Mas proibi-lo seria dar ao Estado a prerrogativa de uma escolha –ignorar a revista, não assistir ao vídeo– que é individual.
Daria para acrescentar que uma vertente importante do humor, como uma vertente importante da arte, opera no limite dos valores aceitos, confrontando gosto e ideologia do público. Pense em piadas que reproduzem estereótipos racistas. Elas podem confirmá-los ou, por meio da exacerbação irônica ou recurso semelhante, fazer o contrário.
Batalhas difíceis
De um modo ou outro haverá reações como a de d. Odilo. Que poderiam ser mais complexas de se lidar, digamos, trocando-se os personagens. Se o cardeal é um alvo até fácil para o establishment cultural progressista e laico –na Vila Madalena ou no Leblon, ninguém tem pena de um homem branco e poderoso na hierarquia da igreja–, o que aconteceria se o indignado fosse muçulmano, judeu, gay, mulher?
Uma resposta possível teria algo de casuístico. Certos grupos são menos ou mais vulneráveis de acordo com as circunstâncias. O Brasil é um país com passado recente de escravidão. Gays ainda são agredidos na avenida Paulista. Mulheres sofrem o diabo nas classes pobres. Já os cristãos, diferentemente do que ocorre em outras partes do mundo, são maioria e nunca foram perseguidos por aqui.
O problema desta abordagem caso a caso, que dependeria de uma sensibilidade política sempre discutível para dirimir conflitos, é ser discriminatória por princípio.
Às vezes, a democracia faz ginástica para se adaptar a distorções do gênero –caso das cotas em universidades, que têm como recompensa anunciada a diminuição de desigualdades históricas.
Tentar fazer esse tipo de reparo na esfera do humor, permitindo-se zombar da fé cristã, mas não de outras crenças e grupos, e considerando que tudo se resume a meia dúzia de piadas (que, ademais, passam pelos filtros de qualidade e conveniência da sociedade), já está além do razoável.
Restam, então, as alternativas a partir de uma regra única e universal. A primeira, que proíbe tudo o que parecer incômodo por via das dúvidas, é pior: o cerceamento do discurso do humorista, do artista ou de qualquer cidadão tende a limitar o debate público e formar uma audiência infantilizada.
A segunda alternativa, com todos os problemas que acarreta, é a da liberdade. Nos Estados Unidos, além do caso Larry Flynt, o modelo venceu batalhas difíceis e legitimou uma tradição de comediantes incisivos, de Lenny Bruce e Andy Kaufman a Louis C.K. e Chris Rock, e uma prática de confronto e oxigenação das ideias que fortalece a democracia. Se o Porta dos Fundos acabar nos tribunais superiores, seria bom que o mesmo acontecesse no Brasil.