1. Trilhas sonoras defasadas.Uma canção ecoa na cabeça das autoridades do governo federal, numa trilha sonora trazida de memória: “Tudo era apenas uma brincadeira/ E foi crescendo, crescendo, me absorvendu-u-u…”.
A prática do rolezinho, que começou na planície periférica de modo quase inocente, como brincadeira juvenil, foi crescendo, crescendo, ganhou proporções de impasse político e de potencial perturbação da ordem pública e hoje atormenta os corredores planaltinos, absorvendo o tempo escasso do pessoal que bate ponto na Esplanada dos Ministérios. A esta altura, a composição de Peninha, provavelmente nos vibratos indefiníveis de Caetano Veloso, faz o fundo musical das piores paranoias das autoridades. Entre um respiro e outro, elas torcem para que outro verso da mesma letra seja igualmente verdadeiro: “Mas não tem revolta, não”.
A questão é: e se tiver? E se o rolezinho for o estopim de explosivos mais devastadores? E se houver rolezaços na porta dos estádios durante a Copa do Mundo de Futebol? E se a popularidade da presidente descarrilar? “E se o oceano incendiar? E se cair neve no sertão?” Agora é a voz de Francis Hime que vem aturdir os tímpanos do poder. Os acordes que antes embalavam a imaginação romântica dos que hoje dão expedientes pragmáticos em Brasília voltam agora com sentidos assombrosos. Mano Brown tentou avisar: “Você não sabe de onde eu vim/ Você não sabe o que é sofrer”.
2. Lentes cristalinas – e erradas. O poder pensou certo, mas com os referenciais invertidos. Pensou certo porque, sim, existe o risco de rolezinhos alegres e adolescentes se desdobrarem em protestos organizados que venham a ferir a cultura do consumo e do espetáculo – nada menos que o hábitat da Copa do Mundo e das eleições. Se essa cultura entrar em pane, tudo o que era previsível se vai esvanecer em incógnita. Uma roleta-russa.
O poder pensou com os referenciais invertidos porque, não, os protagonistas dos rolezinhos não estão nem aí para Dilma Rousseff ou Aécio Neves. Não são um partido. O que eles trazem é o desejo de brilhar na cena dominada pela mercadoria – a escolha do shopping como arena não é casual, em nenhum sentido. Palavras como candidatura, mandato ou legislação eleitoral não integram o seu vocabulário.
O poder pensou certo quando anteviu o curto-circuito iminente, mas apoiou-se nos referenciais invertidos quando achou que o impasse poderia ser administrado por gestores da segurança pública (ou privada).
O rolezinho não é um problema em si. É um problema além de si. O problema, nele, está fora dele. O problema é que ele abre um canal (involuntário e incendiário) entre dois mundos tragicamente incompatíveis: a periferia alijada dos direitos básicos e uma certa (e incerta) elite econômica que chafurda na ritualização gozosa de privilégios coreografados: o moço que carrega as compras para você, o manobrista em desabalada carreira pelo estacionamento subterrâneo para buscar o seu automóvel, uma babá exclusiva para passar guardanapo na boca do seu bebê.
A dimensão pública dos shoppings
O rolezinho transpõe (ou perfura) o muro que garante a estabilidade da sociedade brasileira: a cerca eletrificada que separa o condomínio de luxo da favela ao lado, o vidro blindado no carro importado, as fortificações à prova de bala que protegem os shoppings, a indiferença adestrada com que o cidadão de bem passa ao lado do mendigo estatelado sobre um papelão mal estendido na calçada.
O rolezinho precipita o contato corporal entre dois universos que só coexistem porque não se tocam. Traz para dentro das catedrais do consumo (primeiro, as da periferia; depois, as dos bairros supostamente elegantes) gente que não era para estar ali, no centro das atenções. Não era para estar ali desfilando na passarela principal, como se fosse milionária.
Repita-se: o pessoal que manda pensou certo, mas com os referenciais invertidos. Na visão desse pessoal, seria prudente agir para evitar contatos imediatos de enésimo grau entre esferas tão apartadas. Mas, também na visão deles, é uma inversão obtusa combater a garotada como se combate um assaltante, assim como é uma inversão disparatada tentar neutralizar a performance (estética) dos rolezeiros com o discurso próprio da disputa política. Rolezinhos não são legendas partidárias nem falanges de criminosos. São apenas sinalizadores de uma desigualdade social que não pode mais persistir, mas essa urgência parece escapar às lentes do poder público – ainda que alguns apelem para o “diálogo” – e também do poder privado.
3.Os nomes das coisas. Inevitável: rolezinhos serão – já são – instrumentalizados por aventureiros, profetas, pios, ongueiros e ativistas. Vem complicação por aí, sobretudo porque teremos uma recidiva das manifestações de junho. A Copa vai fazer subir a temperatura e a pressão. Dizem os especialistas em futebol que os estádios estarão abarrotados de torcidas patrocinadas, de socialites, de endinheirados que pagam passagem de avião para ver uma única partida – mas estarão vazios de povo. Claro: está aberta a vaga para alguém “que sacuda e arrebente o cordão de isolamento” (Aldir Blanc).
Chamemos as coisas pelos seus nomes. Os estádios, incluídos os erguidos com dinheiro público, foram privatizados além da conta para o circo da Copa. A propósito, os shopping centers, empreendimentos indiscutivelmente privados, são em parte espaços públicos, posto que o acesso a eles é franqueado ao público. Shoppings não são clubes nominalmente fechados, ao menos por enquanto. Normalmente, quando alguém decreta que algo que tem dimensão pública é estritamente uma propriedade privada está querendo justificar a privação dos mais pobres. É esse tipo de impostura retórica que os rolezinhos furaram sem querer. Agora, ninguém mais sabe o que fazer.
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM