Já faz um tempo, li uma matéria de jornal onde o Jorginho (Cunha Lima, velho conhecido que, na época, era o responsável pela TV Cultura) tecia suas opiniões e comentários sobre a TV Pública.
Como ainda morava em São Paulo, tentei falar com ele por telefone. Impossível! Eram milhares de reuniões, viagens, palestras, estava ocupado. Todos nós sabemos como estes executivos trabalham, não?
De fato, depois de haver trabalhado naquela emissora – por indicação do Fernando Faro, meu ídolo máximo e que representa pra mim um dos raros sinais de vida inteligente no meio televisivo –, poderia, pelo menos, tentar auxiliar, fazendo algumas considerações interessantes na leitura do papel e função das TVs Públicas. Quem teve experiências de sucesso profissional, deve, por obrigação, dividi-las com um colega que está em apuros. E, pelo que dizia a matéria, o Jorge estava.
Agora, li outra matéria a respeito do mesmo assunto escrita por Engênio Bucci, a quem não conheço. Depois de ler a primeira frase, o que eu previra, aconteceu:
‘Desde o final de fevereiro, a TV Cultura de São Paulo vem sendo questionada publicamente sobre o seu desempenho no Ibope.’
A história do baião
Reapareceu o velho e batido discurso calcado na questão financeira versus qualidade de programação. Desde que me conheço por gente esta conversa existe: ‘Fazer televisão com qualidade é muito caro!’ O argumento em si mesmo é discutível, quando se está falando de TVs comerciais. No caso das TVs Públicas, mais ainda.
A meu ver, medir audiência, exibir comercias, usar as concorrentes (comerciais) como referência de linguagem, são um pretexto para que tudo fique muito mais simples. Localiza-se um único (?) inimigo: a falta de dinheiro. Não seria ‘esta coisa, uma outra coisa’?
A busca por lucro pela TV comercial se justifica plenamente, é compreensível. A concessão do canal foi dada ao empresário para que ele ganhe dinheiro. Este é o seu direito. E até hoje, mesmo com muitos anos de vivência no meio, não sei qual é a contrapartida. E, diga-se de passagem também, não sei quais são seus deveres.
Então, quais seriam os deveres e direitos da TV Pública?
A quantidade de exemplos de produções baratas e interessantes que já fizeram sucesso (de audiência) na TV Cultura, e logicamente migraram para outras emissoras, é imensa. Prata da casa, na Cultura nunca teve seu devido valor. Então, como produzir é caro, sempre pensei, ‘quem sabe, vendendo o que está já pronto a situação pudesse ser outra’.
Certa vez, papeando com o Faro quando trabalhava lá, e ouvindo pelos corredores as cansativas e constantes lamúrias dos funcionários todos, como solução, imaginei resgatar todo o acervo musical (riquíssimo) das séries produzidas por ele. Dar-lhes ‘um banho de loja’. Traduzir, re-editar, re-colorir, usar o material em contextos diferentes. Enfim, reciclar e aproveitar, para vender para fora, o material maravilhoso que lá existe. Por exemplo, contar a história do baião!
‘Poderemos pensar…’
Ou então, simplesmente permutá-lo por séries internacionais. Com isso, na pior das hipóteses, trazer prestígio pra dentro da emissora. De repente, prestígio. Depois, audiência. Finalmente, dinheiro. Meu raciocínio era mais ou menos este. Afinal, o material de autoria do Faro era, e é até hoje, ouro puro para o mercado ávido de MPB pelo mundo.
Ele, desconfiado, me ouviu e recomendou que eu falasse com uma das ‘papisas’ internas da época. E eu fui. E cheguei animado.
Para exemplificar, falei dos ienes japoneses, dos dólares da Pionier comprando a gravadora do David Grusin, a Sony comprando os selos de jazz, os jazzistas tocando MPB, da turma de artistas brasileiros fazendo sucesso no Japão, falei do mercado de música. Para enfatizar, subi na mesa, dancei duro imitando japoneses, cantei ‘Mamãe eu quero’ em sânscrito.
E… acabei ouvindo que, pelos estatutos da Fundação Padre Anchieta não era possível vender nada. Permutar? Quem sabe…
Mas não me dei por vencido. Aí, falei da Globo.
Contei que os japoneses tinham séries incríveis sobre ciência. Uma, inédita (!), onde a câmera entrava corpo humano adentro. Contei que eu recebera uma delegação do sol nascente no Globo Repórter para vender, trocar, fazer qualquer negócio com algum material brasileiro. Mas, no fim da exibição do que eu mostrei, segundo eles, naquele momento, o material não tinha qualidade técnica nem conteúdo de interesse para as audiências do Japão.
Ouvi um tímido ‘Quem sabe, poderemos pensar…’
Com talento e esforço, o programa se faz
Acabei pensando sozinho: por que não mudar o estatuto? Produção financiando produção seria algo ilegal?
Agora, o material original, sem modificações, está nas lojas brasileiras. Quem sabe, fazendo sucesso nas lojas de Londres e Bangladesh.
Hoje, três ou quatro anos depois da entrevista do Cunha Lima ao jornal, pouca coisa mudou. Só os preços de material eletrônico estão um pouco diferentes. Senão, vejamos:
Se você for até a esquina de sua casa (se quiser, posso ir junto…) comprará, com preço de padaria ‘fina’, quatro fitas virgens para gravar excelentes imagens (R$ 12.00,00/cada). Com preço de coreano negociante, no Shopping, uma câmera 3ccd (R$ 1.600,00), cuja qualidade é de broadcasting. Agora já está capacitado para captar as imagens (brutas) do seu programa. Mas, você vai precisar editar, sonorizar e finalizar as imagens do trabalho que começou quando foi à padaria para comprar as fitas.
Então: com o custo de quinze cestas básicas no Rio de Janeiro (R$ 247,25 cada), perfazendo R$ 3.708,75, mais dez salários mínimos (R$ 415,00) que somam R$ 4.150,00, comprará o programa de edição e o ‘Mac’ necessários para executar a tarefa.
Milagre! Depois de gastar um total de R$ 9.506,75, sem sair de casa, com algum talento e esforço, o programa que idealizou vai estar pronto!
Um conteúdo cheio de nada
Atenção: aqui não vamos computar os custos de transporte, hospedagem e alimentação da equipe, nem salários, nem o preço do aluguel de iluminação (se formos gravar cenas internas). Afinal, tivemos que embutir a compra do equipamento inicial no custo da produtora de TV (no seu apartamento) que acabamos de fundar. Esta primeira produção foi caríssima, mas, na segunda, com o custo amortizado, será bem menor. Imagine depois de três ou quatro! Tendo onde exibir, seremos bem-sucedidos financeiramente.
Claro que isto é só um exercício de esclarecimento da ‘opinião pública’, uma tentativa de lembrar alguns detalhes que, em geral, passam despercebidos por quem está acostumado a comprar ‘gato por lebre’. Tudo que aqui está relatado, para ficar mais ‘entendível’ deveria estar e ser antecedido por um imenso ‘grosso modo…’, mas, mesmo sem ele é o que está descrito aqui, a expressão da mais pura da verdade. E mais: a idéia não é polemizar, só opinar contando algumas histórias.
Agora, resta saber o valor do conteúdo e forma, as idéias que estarão registradas nas fitas que foram compradas na ‘padoca’. Na verdade, o valor agregado daquilo que vai ao ar.
Se pensarmos em Ibope, nos dias de hoje, prestando bem atenção, excluindo as produções ficcionais, as novelas, e incluindo neste conceito de ficção o tal do BBB, além de alguns shows musicais (onde as TVs não pagam cachês aos artistas), tudo que se vê na tela da TV é um conteúdo cheio de nada: a tal câmera oculta, vídeos caseiros, pegadinhas, um jornalismo que aqui é sempre criticado, documentários sem nenhuma originalidade e programas de auditório, ou de entrevistas, que custam uma ninharia. A TV explora, de forma desonesta, as pessoas que acham lindo aparecer na TV.
Objetivos, personalidade e marca
Há alguma coisa mais ridícula, canhestra e falsa, do que um bando de pessoas ensaiadinhas gritando em coro Esporte Espetacular!, ou mais abominável que a imagem que a Globo mostra com recadinhos da torcida ao seu narrador contratado preferido? E as novelas, que hipócrita, estudada e demagogicamente incluem temas ‘fortes’, como a homossexualidade e o uso de drogas, para no dia seguinte surgirem no noticiário das revistas e jornais posando de mídia séria? Ou, então, os programas de auditório onde as mulheres que, quando se sentem traídas, avançam nos maridos a socos e pontapés? Falaremos naquele sujeito barrigudo que se apresenta como jornalista e grita, e esbraveja, exige que ‘alguma autoridade’ atenda ao telefone ‘da produção’, e que, no ar, não tira o olho da maquininha que mede a audiência minuto a minuto? Aquele um que espicha o assunto enquanto o número de espectadores for comercialmente interessante e, depois, quando os números caem, muda de assunto? Ou, melhor ainda, falaremos no domingão que faz concursos de morenas dos tchans, e seus traseiros lindos que ensinam desde cedo às menininhas de Itabaiana (ou Delfinópolis, onde eu vivo) a rebolar como mulheres feitas atrás de um marido rico? Falaremos de um outro gordito que faz desfiles de lingeries cavadinhas e caríssimas pra estimular o consumo de peças tão essenciais para a saúde da mulher brasileira?
Servirá essa TV como modelo a ser seguido pela TV Pública, será bom perseguir este Ibope, esta referência? Deveremos usar nosso recém-comprado equipamento para copiar estas grades de programação?
Acho mesmo que uma coisa não é outra coisa. A TV Pública não tem nada a ver com isso. Ela deveria ser feita com o nosso dinheiro para nosso uso, espalhar pelo éter temas e conteúdos personalizados e de interesse outro que não o de estimular o consumo frenético de produtos caros e supérfluos. Pelo menos, abster-se do costume de, através de sua programação, incentivar a competição entre todos para ganhar algum dinheiro ou alguma visibilidade. Deveria ter objetivos seus, personalidade, marca, e esquecer o Ibope que, aliás, funciona de maneira estranha: retro-alimenta seu faturamento, faturando.
Escolhendo uma comunidade
Sei não… Afinal para que serve uma TV Pública?
A TV comercial, já sabemos: Serve como instrumento de pressão e poder político para negócios misteriosos, serve para incensar, e depois transformar jornalistas em astros e estrelas do show business, serve também para eleger figurinhas estranhas como deputados federais – e olhem que não estou falando do Clodovil, a quem, por quase dois anos dirigi na Band e na Manchete, e nunca foi ‘difícil’ como apregoavam.
Mas, quase me esqueço que há outra maneira de comparar o custo do equipamento que sugeri antes.
Todo ele, custa o preço de oito almoços com duração de três horas e ao custo de R$ 125,00 (per capita) para nove executivos de TV (sejam do comercial ou de produção) no Figueira Rubayat de São Paulo. Detalhe: dependendo do vinho e da gorjeta ao manobrista adulador, a quantia pode ser o suficiente para investir numa mala de iluminação simples para uso na produtora.
Como este assunto merece um ensaio e a questão aqui é outra, antes que alguém me acuse de leviano e fique dizendo que ‘criticar é fácil’, temo que precise deixar uma sugestão de pauta para um documentário que possa ser minimamente interessante. Reconheço que, quando muito pouco, precisamos gravar alguma coisa com o equipamento que compramos com R$ 10.000,00. Fica a sugestão.
Comecemos, escolhendo uma comunidade de periferia de qualquer grande cidade brasileira. Paguemos, durante um mês e variando de casas, a quantia de R$ 20,00 por noite, tarde ou manhã de TV Pública assistida por pessoas comuns.
Um mês de chamadas no ar
Documentemos o ambiente nos lares, as ruas onde vivem, seu comportamento durante as refeições (quando houverem refeições), suas expressões vendo a programação da TV, perguntemos a eles o que acharam, saibamos quais são seus sonhos e anseios de vida, finalmente, perguntemos onde gostariam de morar e que tipo de programas gostariam de ver na TV. Sugestão do roteirista: seria de bom alvitre que ficasse claro nas imagens gravadas que o mundo entra naqueles espaços confinadíssimos somente quando a luz azulada da tela se acende ou a Ana Maria Braga diz bom-dia.
Depois de finalizados os três programas que realizamos com este material, antes de levá-los ao ar, exibamos os mesmos a dez ou quinze jovens interessados em TV e comunicação. Recomendação da produção: que estes sejam suficientemente atentos, humildes e capazes para entender nas entrelinhas e silêncios das falas que muito pode ser dito sem falas e nas entrelinhas. Ah! E que editar não é clipar.
Organizemos uma reunião entre os 10 jovens mais alguns estudiosos de comunicação escolhidos a dedo. Será bom acrescentar nesta audiência uns dois poetas, quem sabe, um músico e um pintor. Observação: seria vetada a presença de políticos, gestores e administradores que queiram opinar nesta fase do projeto.
Ao levar ao ar o primeiro episódio da série ‘A TV que o Brasil quer ver’, não esquecer de avisar para que vejam o Pgm, o sujeito do Ibope e mais algum eventual e possível patrocinador para novos projetos, Desde que estes, de antemão, saibam que o que o Brasil tem de melhor… É gente!
Observação final: este programa/pesquisa, mesmo que sendo lindo, emocionante, real e poético, irá custar cinco vezes menos do que a quantia que um executivo pagaria por uma pesquisa para saber qual seria um ‘bom jeito’ de fazer uma TV Pública. Com uma vantagem: não precisaria de Ibope nenhum para medir sua audiência, bastando, para tanto, colocar um mês de chamadas no ar, em horários especiais e dentro das emissoras comerciais, e nelas os parentes dos participantes falando que, no dia e hora da exibição não sairiam de casa. Idealmente, se todos nas chamadas dissessem ‘Não perco a Fulana e o Fulano na TV, por nada!’… Seu sucesso estaria garantido.
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Compositor, educador e jornalista, Delfinópolis, MG