Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Respeitar a língua é uma forma de educar

As mudanças impulsionadas pelas novas tecnologias digitais colocaram na tela da TV e na internet a informação massificada, onde está tudo disponível, de fácil acesso, condensado. Daí, a dúvida: será o fim do livro? As pessoas vão deixar de ler? A resposta é não. A leitura, com o tempo e a prática vira êxtase, é semelhante a um transe. Ler é participar de uma das mais extraordinárias invenções e revoluções tecnológicas de todos os tempos, que são os sistemas de escrita. Nós não teríamos a internet hoje sem os códigos da escrita.

Há menos de duas décadas, as crianças e jovens tinham um acesso limitado às informações e os pais podiam, de algum modo, selecionar aquelas que possuíam um conteúdo condizente com cada idade e capacidade de compreensão, direcionando os interesses para boas fontes, como livros clássicos da literatura infantil, bons filmes etc.

As tecnologias atuais, em particular a internet, mudaram toda essa perspectiva. O acesso à internet dissemina-se aceleradamente e hoje a maioria das crianças e jovens, mesmo aquelas de classes menos favorecidas, conseguem ter contato com ela. Se não possui um computador em casa, a escola disponibiliza ou um amigo tem. E quando a telinha do computador se abre, o portal do mundo está aberto. Entretanto, permeando tais informações, há uma grande quantidade de informação invadindo nossos lares todos os dias. O cerne da questão está no fato de que o volume de informação não garante a qualidade.

O retorno da escrita

Com a internet não temos mais informações, e sim menos. Em megalivrarias localizadas em shopping centers tem-se menos informação do que numa pequena livraria nas imediações da USP. Temos menos informação depois que a televisão multiplicou o número de canais. E quando peço na internet uma bibliografia e recebo uma lista com 10 mil títulos, não tenho nenhum ganho de informação com isso. Com a internet, temos uma diminuição trágica de informações. Corremos o risco de nos tornar autodidatas.

O autodidata é aquele que absorve uma enorme quantidade de informações, muito mais certamente do que um professor universitário, mas não sabe filtrá-las. A memória é um mecanismo que permite não somente conservar, mas também filtrar. Caso contrário, seríamos com Funes, el Memorioso, o personagem de Jorge Luis Borges que se lembrava de todas as folhas que havia visto durante 30 anos e ficou louco.

No ano passado fui a Blumenau (SC). Passei muito tempo dentro de táxis, mas só me lembro de um deles: o que tentou me roubar. Minha memória, felizmente, fez uma seleção, ou ficaria com a cabeça cheia de motoristas blumenauenses.

As mudanças impulsionadas pelas novas tecnologias digitais colocaram na tela da TV e na internet a informação massificada, onde está tudo disponível, de fácil acesso, condensado, daí a dúvida: será o fim do livro? As pessoas vão deixar de ler? Apesar de tudo isso, a escrita triunfou, e voltamos à civilização da escrita.

O computador teria obrigado McLuhan a reescrever A galáxia de Gutenberg. Vivemos incontestavelmente o retorno da escrita. Nas nossas telas lemos os textos que imprimimos. Nunca se publicaram tantos livros, construíram catedrais aos livros, como essas imensas livrarias. Portanto, quando eu ouço os escritores dizerem que o livro está prestes a desaparecer não consigo me conformar com tamanha má-fé.

Linguagem e percepção

Hoje em dia, as pessoas falam sua língua nativa mais corretamente, leem mais jornais, mais livros. Isso não significa que a humanidade esteja melhorando e tampouco quer dizer que há menos banalidades, estereótipos e bobagens. Os editores, os donos de televisão, jornais e os críticos literários não entenderam que houve uma revolução espiritual, que o nível geral subiu. Já faz anos que exploro o mundo dos códigos e dos signos pelo estudo da linguagem, da comunicação, da psicanálise, do saber e de muitas outras formas. No entanto, nunca defini meu objeto! Porque cada linguagem propõe um paradigma de mundo diferente.

Quando jovem, meu professor de Semiótica, Naief Sàfady, afirmou: “Nascemos apenas com uma ideia na cabeça e não fazemos outra coisa senão desenvolvê-la ao longo de toda a nossa existência.” Disse para mim mesmo: “Será, então, que não é possível que haja uma mudança de vida? Que reacionário! Perto dos 65 anos de idade, entendi que meu professor tinha razão: de fato, durante toda a minha vida persegui tão-somente uma única ideia. O único problema é que não sei que ideia é essa!”

Creio que estou chegando lá. De tanto me dedicar à semiologia, estou cada vez mais convencido da possibilidade de que o mundo não existe, de que ele nada mais é do que um produto da linguagem.

Em vista de tantos idiotas que rodeiam, ia sentir-me culpado de tê-los imaginado. Prefiro acreditar que eles existam independentemente de minha responsabilidade pessoal. Houve momentos, no decorrer do século passado, em que a filosofia se recusou a falar do mental sob o pretexto de que não podia vê-lo. Hoje em dia, com as ciências cognitivas, as questões do conhecimento – o que quer dizer conhecer, perceber, aprender? – tornaram-se centrais. Os progressos da ciência permitem tocar naquilo que antigamente era invisível, o que obriga a Semiótica questionar: como é que a linguagem estrutura a percepção que temos das coisas?

Poliglotismo alemão

Cada língua propõe um modelo de mundo diferente. Por isso não é possível tentar instituir uma língua universal. É preciso, portanto, tentar passar de uma língua para outra. Eu sou a favor do polilinguismo.

A diversidade das línguas é uma riqueza. Esse é um fato indiscutível, ligado, provavelmente à natureza humana. Durante séculos, não desfrutamos desse tesouro, porque sempre houve uma língua que predominava sobre as demais: o grego, o latim, o francês, o inglês. Creio que, dentro de uma geração, teremos uma classe dirigente bilíngue. Desconhecer as línguas sempre produz a intolerância. Conhecê-las, porém, não é garantia de tolerância. Nos Bálcãs, os sérvios e os croatas entendem-se e, contudo… No passado, os que se revoltavam mais ferozmente contra o colonizador haviam estudado na metrópole. Pode-se massacrar uma população conhecendo-se perfeitamente sua língua e sua cultura.

O conhecimento torna-se, então, um elemento de irritação ou de rejeição, do mesmo modo que um marido e sua mulher podem acabar brigando cada vez mais a medida que vão convivendo. A língua tem razões que a própria razão desconhece. Minha filha, que é bilíngue, pediu à sua mãe uma noite dessas: “Mamãe, conte-me uma Geschichte.” Para ela, Geschichte é o conto, a história de Chapeuzinho Vermelho. Para nós, é História em 12 volumes.

Os franceses fazem de conta que brigam com o inglês, mas têm medo mesmo é do alemão. Desde a queda de Berlim, a Europa do Leste transformou-se num bolsão de poliglotismo alemão e há muita probabilidade de que o alemão se imponha na Europa! Nunca, no mundo, alguém conseguiu impor a língua estrangeira dominante.

Schumacherna piscina

Os romanos foram mestres do mundo, mas seus eruditos conversavam em grego entre si. O latim se tornou a língua europeia quando o império romano desmoronou. No tempo de Montaigne, o italiano era o vetor da cultura. Depois, durante três séculos, o francês foi a língua da diplomacia. Por que o inglês, hoje? Porque os Estados Unidos ganharam a guerra e porque é mais fácil falar mal o inglês do que falar mal o francês ou o alemão. O que não impede que os franceses falem de uma “colonização” de sua língua pelo inglês.

Nem sempre foi esse o caso. A linguagem de Pascal ou de Descartes é simples e corriqueira. O próprio Bergson que trabalha com conceitos difíceis, fala sem tecnicismos. Na segunda metade do século passado, as coisas mudaram. Por que o francês de Lacan parece difícil? Porque sua sintaxe não é francesa, é alemã! De fato, nos anos 60 houve uma verdadeira invasão alemã na filosofia francesa. Daí a ruptura entres os dois continentes. Isso criou uma barreira enorme entre a filosofia insular e a continental. Os anglo-saxões, Locke e Berkeley, falam como todo mundo. Wittgenstein, quando começou a pensar em inglês, utilizava uma linguagem simples. Eis a razão por que os americanos gostam tanto de Gramsci – porque ele não se valia do jargão alemão – e por isso eles não se deixaram contaminar pela fenomenologia, por Heidegger, que lhes é incompreensível. Todavia, cederam diante dos franceses germanizados, que influenciaram sua literatura e, depois, sua filosofia. Já é difícil traduzir Lacan em “francês”, imagine em inglês. No Brasil também aconteceu a mesma coisa: basta que um termo seja alemão para que seja considerado com seriedade.

A língua é uma força biológica: não se pode modificá-la com uma decisão política. Pode-se, quando muito, influenciar o uso. É uma função dos jornalistas, escritores e da mídia. Um bom uso mostra-se pela flexibilidade com que as palavras são aceitas. Todas as línguas estão repletas de palavras estrangeiras que foram naturalizadas. Os jornais brasileiros (alguns) nos dizem com frequência que Michael Schumacher, da Fórmula 1, pegou a pole position, um termo inglês inútil, pois pode dizer perfeitamente que chegou em primeiro lugar ou qualquer coisa parecida. Certa vez, li num jornal que Schumacher tinha conseguido a pool position. Ele devia estar, então, na piscina!

Público x linguagem

Sempre construímos a imagem do amanhã pensando no estudante da periferia. Hoje, o modelo é o internauta obcecado que se pluga e não lê mais? Isso não se aplica à maior parte das pessoas.

Segundo o acadêmico, Arnaldo Niskier: “É preciso, porém, ainda mais agora com a decadência do ensino e a enormidade de erros veiculados pelos meios de comunicação, distinguir o que pode ser (ou vir a ser) que agride o vernáculo, transfigurando-o, impregnando-o de palavras e expressões alienígenas, absolutamente dispensáveis, tolos modismos e até mesmo erros crassos.”

Respeitar a nossa língua é uma forma de fazer educação. Em primeiro lugar, pode-se registrar o fato, facilmente comprovável, de que nunca se escreveu e falou tão mal o idioma de Ruy Barbosa. Culpa, quem sabe, da deterioração do nosso sistema de educação básica. Em segundo, o pouco apreço que devotamos ao gosto pela leitura. Em terceiro lugar, para não ir muito longe, podemos citar a “contribuição” dos meios televisivos. Donos de uma força descomunal, salvo as exceções de praxe, como os programas gerados pela TV Cultura de São Paulo, praticam um magistral desserviço à educação brasileira. Comunicadores falam mal, atores não se expressam adequadamente, dublagens são feitas de forma chula, programas infantis deseducam – o que se pode esperar desse triste universo?

Certos erros de linguagem que aparecem na mídia impressa, falada, audiovisual, livros didáticos e mesmo na letra de músicas são rápida e inconscientemente assimilados e usados pelo público, que chega mesmo a considerá-los modelos. Frequentemente ouve-se: “a TV diz assim”, “o locutor fala deste modo”, “a letra da música é assim”, “o jornal publicou”, “vi no cartaz, no outdoor” etc. Infelizmente, esta é a realidade em que vivemos, tratando-se da relação público e linguagem dos meios de comunicação de massa.

Palavras estrangeiras naturalizadas

Diante desta real e preocupante situação, urge fazermos tudo o que está a nosso alcance para preservar a pureza desta língua tão bela e tão sonora, falada há quase um milênio, merecedora, portanto, de ser resguardada das distorções grosseiras a que é submetida, frequentemente, na mídia.

Vejamos alguns exemplos de incorreções colhidas aleatoriamente nos meios de comunicação e que poderiam ser facilmente sanadas:

** “Faz o que eu digo, mas não faça o que eu faço.” (Faze o que eu digo…)

** “Obedeça seu velho. Gaste bem sua mesada.” (Obedeça a seu…)

** “Diga-me com quem andas e eu te direi quem és.” (Dize-me com quem…)

** “Fi-lo por que quilo.” (Fi-lo porque quis)

** “A nível de administração.” (Em nível de ..)

Os cartazes, os anúncios, a imprensa, a letra de músicas populares refletem o desenvolvimento cultural da sociedade da qual todos fazemos parte. Cabe-nos denunciar o mau uso da língua nessas formas de comunicação, para que seus erros não venham a ser motivo de vergonha para nós.

Entre as incorreções que destoam no uso da língua, são frequentes pequenos descuidos, até perdoáveis, mas há casos de barbarismo contra a pureza da língua nos aspectos sintáticos, regenciais, ortográficos, sem falarmos de troca tão comum de tratamento, como também de organização ilógica de ideias, o que acarreta, frequentemente, ambiguidades e interpretações errôneas de pensamento.

A língua é uma força biológica: não se pode modificá-la com uma decisão política. Pode-se, quando muito, influenciar o uso. É uma função dos jornalistas, escritores e da mídia. Um bom uso mostra-se pela flexibilidade com que as palavras são aceitas. Todas as línguas estão repletas de palavras estrangeiras que foram naturalizadas.

Aprendizado constante

Tudo no mundo de hoje parece girar em torno da “informação”. As abordagens novas não se referem tanto à capacidade que o homem pós-moderno tem para aproveitar adequadamente suas potencialidades cerebrais. Fala-se em “revolução digital”, traduzindo-a como competência para acesso à informação. Oras, o simples acesso à informação não se traduz por conhecimento. Haverá talvez necessidade de, num futuro próximo, automatização interpretativa do volume de informações que chegam até nós.

O importantíssimo é ter em mente: há comunicação, há aprendizado. Se há ação do signo, mentes elaborando conteúdos, há aprendizado, há diálogo. Todo aprendizado ocorre por meio de signos. O processo comunicativo é fundamental à cognição. Aprendemos comunicando, e comunicamos aprendendo. Mesmo sem querer, comunicamos (por meio da linguagem corporal, por exemplo). Mesmo sem querer, aprendemos, todas as vezes que participamos de uma cadeia sígnica. Estamos no mundo nos comunicando e aprendendo.

Os objetos à nossa volta e dentro de nós produzem diálogo constante, constante processamento, constante produção de signos.

Quando vamos ao cinema, aprendemos alguma coisa em nossa leitura do filme. Se o conteúdo apreendido é eticamente interessante, é outra questão. Se assistirmos a um acidente, um fato trágico, ao conversarmos no bar, na igreja, no olhar vitrines, estamos sempre aprendendo.

Na escola, portanto, procura-se o conhecimento sistemático, induzido. Aqui os objetos estão disponibilizados para quem puder e quiser entrar em processo semiótico, cada um de acordo com suas possibilidades, de acordo com seus signos prévios.

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Nelson Valente é professor universitário, jornalista e escritor