Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um diabo dum humorista

No começo não se sabia. Muitos diziam Hênfil, alguns aspirando o h: Rênfil. Que nome estranho. E que humor estranhíssimo. Tinha disso no Brasil – e ainda por cima em Minas? Sensacional. A surpresa escandalizou o Brasil, incendiou o Brasil em uma semana. Aí então, foi-se sabendo: Henrique de Souza Filho, de Belo Horizonte. Henrique Filho, hemofílico, a tônica era no i. Expondo sua própria chaga, ensinando o brasileiro a meter o dedo na própria ferida, radicalizando entre nós o aspecto fundamental do humorismo da segunda metade do século XX: a autocrítica, a autodenúncia valente, a investigação do espelho, o divã. Aponta-se menos o Outro. A solução, se solução há, está em mim. O Brasil era tudo o que era – e mais tudo o que não queria admitir.

Depois do Henfil, não foi mais possível ignorar, o Brasil era também o fradinho pequeno, perverso, racista, inescrupuloso. O Henfil tirou de debaixo do tapete tudo o que para lá tínhamos varrido zelosamente a nossa História inteira. Taí – mostrou. E obrigou-nos a olhar, e olhando pudemos ver. E como nos obrigou? De que recursos se valeu para nos puxar pelo nariz e nos atrair o olhar? De bizarríssimo instrumental que consistia no humor mais descarnado e impiedoso, sem complacência nenhuma, a serviço do qual empregou seu traço paradoxal, muito sujo, imundo – e limpo!!!, sem ornato algum; árido mas claro, desagradável e magnético a um só tempo. A unidade entre o enredo e o aspecto era perfeita, e o recado final se resume a isto: olhe aqui que feio.

O Henfil, ele próprio, não era nem fradinho nem graúna. Foi um diabo de um humorista e (tudo nele era assim tão contraditório) um anjo muito puro que por aqui passou feito um vendaval escaldante, mas deixando tudo arejado, ventilado. Foi muito rápido.

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