Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

As impressões digitais do delator

No fim de dezembro de 2001, alguém que se autodenominava TheTrueHOOHA lançou na internet uma questão. TheTrueHOOHA era um americano de 18 anos, com incríveis habilidades em TI e uma inteligência afiada. Sua verdadeira identidade era desconhecida. À época, todos os que postavam comentários no Ars Technica, um famoso site sobre tecnologia, o faziam anonimamente.

TheTrueHOOHA queria montar seu próprio servidor. Era uma manhã de sábado, pouco depois das 11h. Ele escreveu: “É minha primeira vez. Sejam gentis. Eis o meu dilema: quero hospedar meu servidor. De que preciso?”.Em seguida, participantes habituais do Ars inundaram o site de sugestões úteis. O internauta respondeu: “Ah, que vasto tesouro de conhecimento geek é o Ars”.

TheTrueHOOHA viria a se tornar um prolífico contribuinte do site. Ao longo dos oito anos seguintes, assinaria quase 800 comentários. Descrevia-se de maneiras diversas: como um desempregado, um soldado fracassado, “editor de sistemas” ou como alguém que tinha livre acesso ao Departamento de Segurança dos Estados Unidos.

Sua casa ficava na Costa Leste do país, no Estado de Maryland, perto de Washington. Mas, com 20 e poucos anos, ele já era um homem internacionalmente misterioso. Aparecia na Europa –em Genebra, Londres, Irlanda, Itália e Bósnia. Tinha ido à Índia. Apesar de não ter diploma universitário, tinha um conhecimento impressionante sobre computadores. Politicamente, parecia ser um republicano ferrenho. Demonstrava uma grande crença nas liberdades individuais, defendendo, por exemplo, os australianos que cultivavam pés de cannabis.

De tempos em tempos, sabia mostrar-se detestável. Chamou, por exemplo, um camarada do site Ars de “cuzão”; outros, que discordaram de suas visões “8 ou 80” sobre a seguridade social, eram “uns retardados de merda”.

Os comentários dele nos chats cobriam uma vasta gama de assuntos: games, garotas, sexo, Japão, o mercado de ações, sua desastrosa passagem pelo Exército americano, suas impressões negativas sobre aspectos multirraciais do Reino Unido (ele disse ter ficado chocado com o número de muçulmanos no leste de Londres e chegou a escrever “Achei que havia desembarcado no país errado”¦ foi aterrorizante”), ou a alegria de ter uma arma (“Tenho uma Walter P22. É minha única arma, mas sou louco por ela”, escreveu em 2006). A seu modo, seus comentários compõem um “Bildungsroman”, um romance de formação.

Então, em 2009, as participações dele foram perdendo o gás. Em fevereiro de 2010, ele mencionou algo que o perturbava: a vigilância intrusiva exercida pelo governo. “A sociedade realmente parece ter desenvolvido uma obediência cega a certas figuras assustadoras”¦ Será que tivemos de dominar as dificuldades desse terreno acidentado para chegar até aqui e parar? Ou foi uma mudança de maré relativamente súbita que não conseguimos perceber por conta do sigilo governamental?”

A última postagem de TheTrue HOOHA é de 21 de maio de 2012. Depois disso, sumiu; virou uma assinatura eletrônica perdida em meio à vastidão do espaço cibernético. Ele era, agora sabemos, Edward Snowden.

Família

Edward Joseph Snowden nasceu em 21 de junho de 1983. Seu pai, Lonnie Snowden, e sua mãe, Elizabeth –ou Wendy–, eram namoradinhos de escola que se casaram aos 18 anos. Lon era oficial da guarda costeira dos EUA; Snowden passou seus primeiros anos em Elizabeth City, na costa da Carolina do Norte. Ele tem uma irmã mais velha, Jessica. Quando Snowden era pequeno –um garoto louro e sorridente–, ele e a família mudaram-se para Maryland.

De acordo com o pai, Snowden desandou na escola quando ficou doente, aparentemente vítima de mononucleose infecciosa. Perdeu “quatro ou cinco meses” de aulas na adolescência. Outro fator prejudicou seus estudos: seus pais estavam se separando. Snowden não conseguiu terminar o ensino médio. Em 1999, aos 16 anos, ele se inscreveu no Anne Arundel Community College, onde frequentou cursos de computação.

Em seguida ao divórcio dos pais, Snowden dividiu o apartamento com um amigo e depois foi morar com a mãe, em Ellicott City, a oeste de Baltimore. Ele cresceu sob a gigantesca sombra de uma agência governamental. Da porta da frente da casa de sua mãe até lá são 15 minutos de carro. Meio escondido pelas árvores, há um grande prédio esverdeado em forma de cubo. Uma placa na saída da rodovia Baltimore-Washington informa: “NSA, próxima à direita. Somente funcionários”. A instituição tem 40 mil funcionários. É o maior empregador de matemáticos do país.

Para Snowden, porém, a probabilidade de ingressar nesse universo era pequena. Aos 20 e poucos anos, sua atenção se voltava para computadores. Para ele, a internet era “a invenção mais importante da história da humanidade”. Conversava on-line com pessoas “com todo tipo de opinião, gente que jamais teria encontrado sozinho”. Não era só um nerd: mantinha-se em forma, praticava kung-fu e, segundo um registro no Ars, “namorava garotas asiáticas”.

A invasão do Iraque liderada pelos EUA, em 2003, levou Snowden a cogitar uma carreira militar. “Queria lutar no Iraque porque, como ser humano, sentia a obrigação de ajudar a libertar as pessoas da opressão”, ele disse.

Em face disso, o serviço militar representava uma alternativa atraente: recrutas sem experiência prévia poderiam se tornar soldados de elite. Em maio de 2004, ele se alistou. Apresentou-se em Fort Benning, na Geórgia. Foi um desastre. Snowden estava em boa forma física, mas era um soldado improvável: era míope e tinha os pés estranhamente estreitos. Em um treinamento da infantaria, Snowden quebrou as duas pernas. Depois de mais de um mês de incertezas, o Exército o dispensou.

Espionagem

Em 2005, de volta ao lar, Snowden conseguiu um emprego como “especialista em segurança” no Centro de Estudos Linguísticos Avançados, na Universidade de Maryland (ao que tudo indica, começou como guarda de segurança, depois passou para a tecnologia da informação). Snowden estava trabalhando para um braço secreto da NSA no campus da universidade. Graças, quem sabe, ao seu curto histórico militar, ele havia se infiltrado no mundo da espionagem americana, mesmo que ainda no baixo escalão. O centro tinha colaboração estreita com a comunidade da inteligência americana, provendo treinamento linguístico.

Em meados de 2006, conseguiu um emprego no setor de tecnologia da informação na CIA. Ele rapidamente ia percebendo que suas habilidades excepcionais em TI abriam todos as portas do governo. “Esse negócio todo de diploma é besteira, pelo menos no mercado interno. Se você realmente’ tem 10 anos de experiência em TI… você PODE, SIM, conseguir um emprego muito bem pago em TI”, ele postou, em julho de 2006.

Em 2007, a CIA o enviou para Genebra, em sua primeira missão internacional. A Suíça representava um despertar e uma aventura. Ele tinha 24 anos. Seu trabalho era manter a segurança da rede de computadores da CIA e cuidar da segurança do computador dos diplomatas americanos. Ele era funcionário de tecnologia da informação e sistemas. E também cuidava da manutenção do ar-condicionado e do aquecimento.

Em Genebra, Snowden entrou em contato com todo tipo de pontos de vista. Certa vez, ele deu carona até Munique a um cantor estoniano chamado Mel Kaldalu. Os dois haviam se conhecido em um evento do movimento Free Tibet; não eram íntimos, mas eram próximos o bastante para que Snowden lhe oferecesse uma carona.

Os dois conversaram durante horas na autoestrada vazia. Snowden defendeu que os EUA deveriam atuar como a polícia do mundo. Kaldalu discordou. “Ed é um cara inteligente”, diz o cantor. “Talvez até meio teimoso. Ele é extrovertido. Gosta de discutir as coisas. É autossuficiente e tem opiniões próprias.”

O cantor estoniano e o técnico da CIA conversaram sobre a dificuldade que os ativistas pró-Tibete tinham para obter vistos chineses. Snowden se mostrou cético quanto ao sucesso das Olimpíadas de Pequim. Kaldalu disse que a ocupação israelense da Palestina era moralmente questionável. Snowden disse que compreendia esse ponto de vista, mas que via o apoio dos EUA a Israel como a opção “menos pior”. Kaldalu sugeriu uma abordagem “desconstrutiva”. O par também conversou sobre como a velocidade das mudanças tecnológicas poderia afetar a democracia e a maneira como os povos se autogovernavam.

De direita

À época, a figura que mais personificava as visões de direita de Snowden era Ron Paul, o mais famoso expoente do libertarismo americano. Em 2008, Snowden apoiou a candidatura de Paul à Presidência. Também se interessou pelo candidato republicano John McCain. Não apoiava Obama com o mesmo entusiasmo, mas tampouco fazia objeções a ele.

Uma vez que Obama tornou-se presidente, Snowden passou a detestá-lo intensamente. Criticava as tentativas da Casa Branca de banir alguns tipos de armas. Mas outro assunto irritou-o ainda mais. O Snowden de 2009 investia contra os funcionários do governo que vazavam informações secretas para os jornais –o pior crime concebível, na sua visão apoplética.

Em janeiro daquele ano, o “New York Times” publicou um relatório sobre um plano secreto de Israel para atacar o Irã. O jornal sustentava que sua reportagem se baseava em 15 meses de entrevistas com autoridades dos governos dos Estados Unidos, Israel e de países europeus, além de inspetores internacionais nucleares.

Os comentários de TheTrue HOOHA, publicados no Ars Technica, são reveladores: “QUE PORRA É ESSA, NYTIMES. Estão TENTANDO começar uma guerra?”, “eles estão divulgando ao público essas merdas confidenciais”, “além disso, que porra de fontes anônimas são essas? essa gente deveria levar uns tiros no saco”, “essa merda é confidencial por algum motivo”, “não é porque, ah, esperamos que nossos cidadãos não descubram isso’, é porque essa merda não vai dar certo se o Irã souber o que estamos fazendo’”.

As violentas investidas de Snowden contra o vazamento de informações parecem absurdamente dissonantes com seu comportamento posterior, mas ele associaria o início de sua desilusão com a espionagem governamental a essa época. “Muito do que vi em Genebra me desiludiu com relação à forma como meu governo funciona e qual o seu impacto no mundo. Percebi que eu fazia parte de algo que estava causando muito mais danos do que benefícios”, diria.

Em fevereiro de 2009, Snowden pediu demissão da CIA. Ele iria trabalhar como terceirizado numa unidade da NSA em uma base militar americana no Japão. Vagas como essas tinham se ampliado consideravelmente desde que o Estado americano passara a delegar a empresas privadas muitas tarefas de inteligência.

Snowden agora estava na folha de pagamentos da empresa de computação Dell. A essa altura, a lacuna inicial em seu currículo se tornara bem irrelevante. Ele tinha livre acesso ao que era mais confidencial e uma tremenda habilidade com computadores.

Desde sua adolescência, Snowden devotava um grande fervor ao Japão e tinha estudado japonês durante um ano e meio. Ele usava ocasionalmente a pronúncia japonesa de seu nome –”E-du-aa-do”– e havia escrito, em 2001: “Sempre sonhei com conseguir vencer’ no Japão. Seria um sonho para mim arrumar um confortável emprego.gov’ por lá”.

O Japão representou um ponto de inflexão para ele, o período no qual Snowden consolidou-se como um técnico desiludido: “Eu ficava lá observando, enquanto Obama prosseguia exatamente com as políticas que eu achava que tinham de ser refreadas”. Ele diz que entre 2009 e 2012 se deu conta de quão obsessivas eram as atividades de espionagem da NSA: “Eles têm o afã de vigiar ao mesmo tempo todas as conversas e comportamentos do mundo”. Também percebeu como mecanismos desenvolvidos no seio do sistema norte-americano para manter a NSA a par de tudo haviam falhado. “Você não pode ficar esperando que outra pessoa tome uma atitude. Eu estava à procura de líderes, mas percebi que liderança tem a ver com agir primeiro.” Na época em que deixou o Japão, em 2012, Snowden era um delator em potencial.

O novo trabalho de Snowden era no Centro Regional de Criptologia da NSA, na ilha de Oahu, onde fica Honolulu, a capital do Havaí. Ele ainda era contratado da Dell e trabalhava em um dos 13 polos designados para espionar assuntos externos, focando em especial nos chineses. Ele chegou à ilha vulcânica no meio do Pacífico com um plano de fazer contato de forma anônima com jornalistas interessados em liberdades civis e vazar para eles documentos ultrassecretos roubados.

O objetivo de Snowden não era expor segredos de Estado no atacado. Pelo contrário: queria entregar uma seleção do material a repórteres e deixá-los exercer seu próprio julgamento editorial.

[Nota: Este trecho é uma versão modificada a partir do texto da edição brasileira de “The Snowden Files”, que chega às livrarias nesta semana como “Os Arquivos Snowden” (trad. Bruno Correia e Alice Klesck, Leya, R$ 39,90, 288 págs.)]

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Luke Harding, 45, é jornalista do The Guardian; escreveu, entre outros, Arquivos Snowden, que a Leya lança agora no Brasil