“Para mim não há diferença entre os justiceiros do Flamengo e os defensores da ‘violência como método’. Prisão para os homicidas. E vigilância estrita e severa aos que vão às ruas praticar ou pregar violência.”
O professor Weden Alves, da Universidade Federal de Juiz de Fora, fez esse comentário no Facebook, em meio à enxurrada de postagens a seguir ao anúncio da morte do cinegrafista Santiago Andrade, da Band. Santiago havia sido atingido na cabeça por um rojão aceso por um manifestante na quinta-feira (6/2), nas imediações da Central do Brasil, durante protesto contra o reajuste das passagens de ônibus no Rio. Weden vinculava o episódio ao do adolescente negro preso nu a um poste no bairro do Flamengo, depois de agredido por uma gangue de jovens justiceiros de classe média que, depois se soube, têm o costume de fazer “rondas noturnas” para caçar suspeitos de cometerem crimes na região.
O apelo à prisão há de chocar os defensores do abolicionismo penal, entre os quais me incluo, embora com a devida reserva: porque os próprios teóricos do abolicionismo reconhecem que essa proposta não é exequível numa sociedade de classes, de modo que o que podemos fazer agora é reduzir ao máximo o apelo ao encarceramento, embora esta seja uma discussão difícil – e impertinente aqui –, pois se trata de definir que tipo de crime seria punível com cadeia. Porém, na vida cotidiana as práticas tipificadas como crime precisam, ou devem, ser punidas na forma da lei que temos hoje, que é a maneira pela qual as pessoas podem ser responsabilizadas.
A associação entre o ato de barbárie cometido contra o jovem negro e a ação pirotécnica que resultou na morte do cinegrafista faz sentido porque em ambos os casos a ação direta toma o lugar da política. No primeiro, é uma forma de substituir o Estado, acusado de omisso e ineficiente – e de, por tabela, destilar um ódio histórico de classe e raça. No segundo, é uma tentativa de se impor pela força, por mais que as forças em jogo sejam tão desiguais, sem a percepção de que essa ação pode acarretar uma tragédia e ter nefastas consequências políticas.
O pelourinho pós-abolição
De todas as cenas de “mundo cão” que ocorreram recentemente no Rio e circularam nas várias mídias na semana passada, a mais significativa foi a do adolescente nu atado a um poste, pelo pescoço, por uma trava de bicicleta. Mais do que as agressões que ele sofreu, importa a humilhação de ter sido exposto daquele modo, como nos tempos dos escravos no pelourinho.
Nas redes sociais houve quem se recordasse da foto que Luiz Morier fez para o Jornal do Brasil em 1982, premiada com o Esso daquele ano (ver aqui), em que vários homens negros, que depois se comprovou serem trabalhadores com ficha limpa, aparecem amarrados pelo pescoço, conduzidos por um policial, após uma das conhecidas “operações” numa favela.
O rapaz no poste transformado em pelourinho reproduziu essa suprema humilhação documentada há mais de 30 anos.
A cena, que só poderia provocar indignação e repulsa, mereceu aplauso de uma apresentadora do SBT. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio e sua Comissão de Ética reagiram com uma nota condenando enfaticamente a “grave violação de direitos humanos e ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros” praticada pela apresentadora, que considerou “compreensível” a “atitude dos vingadores”, classificada de “legítima defesa coletiva”, e terminou cinicamente com um apelo a que os defensores de direitos humanos fizessem o favor de adotar um bandido. Foi uma forma de ecoar o bordão que se tornou comum entre o público favorável ao extermínio de marginais: “Tá com pena? Leva pra casa”.
A repercussão negativa do episódio levou a apresentadora a tentar se explicar, dizendo que não tinha considerado “aceitável”, apenas “compreensível”, a ação dos agressores. Esforço inútil: compreensível poderia ser uma agressão no calor da hora, em reação a uma tentativa de assalto. Nunca uma ação premeditada como aquela.
A ética e o mundo cão
Como apontou Janio de Freitas, na Folha de S.Paulo, jornalistas simplesmente não podem incitar ao ódio e estimular justiçamentos (ver aqui). Jornalistas existem – pelo menos em tese – para representar e esclarecer o público. Isso às vezes causa contradições, porque o público não é homogêneo: nesse caso mesmo, muita gente se identificou com os “vingadores” e gozou com a situação. Porém, jornalistas precisam respeitar certos valores fundamentais para o convívio social. Precisam se comprometer com o respeito aos direitos humanos e, no caso, mostrar o grau de barbárie que essa cena simboliza.
A condenação da atitude da jornalista do SBT foi muito importante e oportuna, mas o que essa moça fez não difere muito do que se pratica sistematicamente nos programas policiais, cujos apresentadores sempre incorporam a condição de justiceiros, ou nos jornais popularescos, que, conforme a linguagem, exacerbam na exposição do mundo cão ou carregam nas tintas do grotesco. O que dizer, por exemplo, do apresentador que, aos berros, convoca a sua “poliçada” a “sentar o dedo” na “bandidagem”? O que dizer das inúmeras manchetes do diário Meia Hora que tratam conflitos urbanos graves com escárnio e frequentemente legitimam o extermínio de criminosos, como apontei neste Observatório? (Ver “Os mortos bons e os maus”.)
Bem a propósito, a manchete desse jornal na quarta-feira (5/2), sobre a investida policial numa favela, é muito significativa: destaca os seis mortos, chama os traficantes de “manés”, diz que a polícia “sacode o Juramento e deita seis suspeitos”.
Chacina no morro “pacificado”
Este foi, aliás, outro dos episódios que marcaram a semana “mundo cão” no Rio: a operação policial numa área dita “pacificada”, após o assassinato de uma soldado lotada na UPP local, precisamente nos mesmos moldes de sempre, deixando os corpos enfileirados. Os jornais nos pouparam das cenas mais chocantes, preferiram exibir o rastro de sangue na calçada. Mas as fotos circularam pela internet: em tudo semelhantes às dos velhos tempos da política de confronto adotada pelo governo.
Também, como nos velhos tempos, a mesma legitimação da ação policial, como na manchete do Globo de terça-feira (4/2) – “Polícia reage e monta megaofensiva contra crime” – e uma página inteira aberta ao secretário de Segurança, como se o jornal pudesse fazer – e recorrentemente faz – esse papel de porta-voz, sem levantar dúvidas quanto à “pacificação” que volta e meia produz tiroteios e cadáveres.
No dia seguinte, diante do previsível resultado, a reportagem menciona o discurso oficial de praxe – “as circunstâncias das mortes serão investigadas” – e publica matéria com um legista que aponta indícios de execução. Mas é claro que não se cogita de qualquer relação entre a chacina e o apoio à “reação ao tráfico” da edição da véspera.
Exploração do mórbido
Na mesma semana o jornal Extra (quinta, 6/2) dedicou a capa inteira a uma cena de justiçamento na Baixada Fluminense: um homem negro de calção e sem camisa aponta a arma para a cabeça de outro homem negro de calção e sem camisa que, sentado ao chão, tenta se proteger. Manchete: “Num dia é tranca [alusão ao pelourinho], no outro é bala”. Antetítulo: “E ainda tem muita gente que aplaude”. O site do jornal reproduzia o trecho do vídeo que documentava o assassinato, com o tradicional alerta para as “cenas fortes”. No dia seguinte, mantém o tema na capa, com a manchete “Justiceiro bom é justiceiro preso” e a pergunta: “Olho por olho é o que queremos”?
É uma questão interessante: o jornal denuncia a violência, mas ao mesmo tempo atrai a atenção pela exploração das imagens que atiçam o gozo mórbido do público. Deveríamos ser expostos a essas cenas?
Entra aqui de novo a discussão sobre o Código de Ética e as suas possibilidades de aplicação.
O senso comum cristalizado
Para completar a semana “mundo cão”, O Globo (quarta, 5/2) destacou matéria sobre o quase linchamento de um adolescente que foi flagrado tentando roubar comida de um supermercado em Copacabana. Muito reveladora da excitação do público contra os marginalizados, mereceu o comentário do sociólogo Michel Misse, pesquisador de vasta experiência nessa área: “As pessoas acham que o cara, por ser menor, não recebe punição suficiente (…). Deviam levar essas pessoas para ver como é a internação desses menores. É pior que cadeia”.
Nem precisaria tanto, bastaria insistir sistematicamente nessa pauta. Ainda assim, seria necessário muito cuidado com o enfoque, para vencer a resistência do público acostumado a crenças que a própria imprensa ajuda a consolidar. Mesmo diante de evidências, a mudança de opinião leva muito tempo. Quando ocorre.
O desprezo pela vida
Essas dificuldades ficaram claras no episódio que resultou na morte do cinegrafista Santiago Andrade, da Band, a primeira vítima entre jornalistas desde que começaram os protestos contra o aumento das passagens de ônibus, em junho do ano passado, e também a primeira provocada pela ação de manifestantes. Inicialmente, a notícia era de que o cinegrafista havia sido atingido pela polícia, o que foi sustentado inclusive por um repórter da Globo News que cobria a manifestação. A repercussão foi imediata nas redes sociais. Em seguida, com a profusão de imagens de vários ângulos, essa versão foi desmentida. Mas muitos continuaram a duvidar, suspeitando de montagens. E quando a Globo exibiu a entrevista com um dos rapazes envolvidos na história, houve quem sugerisse que se tratava de alguma armação.
Foi um exemplo muito claro e curioso dessa crença seletiva: os que se creem muito críticos costumam dizer que não acreditam na grande imprensa, mas utilizam essa fonte quando surgem informações que lhes interessam. Não deixa de ser engraçado, mas é pior, porque demonstra que acreditam apenas no que lhes ajuda a confirmar seus preconceitos. E é trágico, porque assim nunca serão capazes de aceitar nada que não corrobore suas crenças.
O açodamento da mídia, em especial dos veículos das Organizações Globo, em disseminar um depoimento do advogado do rapaz preso que insinuava a ligação de seu cliente com o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), provocou muitos protestos nas redes sociais. No dia seguinte o advogado voltaria atrás, mas o estrago já estava convenientemente feito, nesse ano de eleições. Ao mesmo tempo, o próprio deputado, ex-presidente da CPI das Milícias, verificou que esse advogado havia trabalhado para um ex-deputado que acabou preso por chefiar uma milícia. Seria “a peça que faltava no quebra-cabeças destas acusações absurdas”.
Porém, esta descoberta abriu um novo quebra-cabeças: por que um advogado de miliciano – por mais que saibamos que advogados, em princípio, não se comprometam com a causa de seus clientes – seria contratado por um militante que poderia ter à sua disposição o serviço dos “advogados ativistas” que trabalham nessas ocasiões? Esta é uma pauta que não poderia ser desprezada e que talvez descobrisse um fio de meada em todo esse novelo tão complexo e contraditório no qual atuam militantes – ou provocadores – que adotam a violência como método.
Não é que a violência seja condenável em princípio, evidentemente. Mas como método ela se torna uma rotina, um espetáculo, uma performance. E quem a pratica demonstra o mais absoluto desprezo pela vida humana, como ficou claro no episódio que vitimou o cinegrafista. Por isso não há diferença entre eles e os que perpetraram a suprema humilhação contra o adolescente negro atado ao poste.
******
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)